Silas Corrêa Leite: Alvéolos de Petit Pavê de Ricardo Pozzo - Resenha Crítica

Breve Resenha Crítica : 
Os Cascalhos dos Poços Íntimos do Livro de Poesia “Alvéolos de Petit Pavê” de Ricardo Pozzo

“Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada(...)/
Agora não espero mais aquela madrugada(...)/
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada/”

(Fé Cega, Faca Amolada, Milton Nascimento)

As vezes brinco de dizer que a Poesia é o meu “sábio chinês” que me resgatou do cárcere privado sem porcelana da vida vã, me cuidou como um triste cachorro craquento da pá virada, e ainda me preserva frutado como uma bananeira que já deu goiaba. Desacelerações de partículas na parte, poesia pode ser tudo e nada ao mesmo tempo, paradoxalmente isso mesmo: criar Poesia propriamente dita. Ou, talvez, Poesia é... ponhamos: varreção de fragmentos e chorumes de subterrâneos mal resolvidos para debaixo do tapete dos palavrórios... O aparato técnico para mim, perdão, é não ter aparato técnico nenhum, as vias acadêmicas às vezes tripudiam sobre o inominável e matam a arte-criação. A subjetividade é, aqui e ali, um lampejo, ou ainda faz desandar a polenta da arte com lume neutro. Todas as alternativas são apenas alter-nativas... Aliás, a própria vida é uma poesia esperando tradução.

A Poesia tem que ser levada até o mais extremo, ou não seria poesia, seria rima, ritmo, metáfora, e eu gosto da santa loucura-lucidez da poesia, que revisita os bulbos inomináveis das entranhas da angústia-vívere, da solidão-coivara, da tristeza-coxia e do terrível e indizível medo de sobreviver; como um dezelo íntimo, um ranço tácito, uma cruz que se extravasa na arte como cicatriz, na poesia como fermento, na criação como um tabule de mixórdia, feito então - como sequela - uma assustadora levitação lustral. Curto e grosso, a poesia também pode ser casca de banana-caturra no trapézio, a casca de tangerina na linha do horizonte, o arco-íris marrom, o chute na canela da escurez, a placa de sinalização estrambólica das erratas de percurso acidentado, o humor irônico dos suicidas, a própria faca de dois legumes das metáforas barulhadas, e ainda assim e por isso mesmo, talvez, as iluminuras de desvairados inutensílios com impropriedades de incompletudes, mais os bulbos paraexistenciais. Talvez até, um liquidificador de ideias mais as fugas das tentativas de abismos da vida como achadouros de cintilâncias...

Pois a Poesia de Ricardo Pozzo, bingo, quero dizer, eureca, é tudo isso e muito mais, somas e sumos, filtros e flancos, e cem por cento diferenciada, perigosa, cortante, que cala fundo o que diz e o que desdiz, o que alavanca num foco, o que vira partitura de algum moinho interior todo seu, salvando prismas de incêndios íntimos, feito uma fuga para o mais fundo poço de si mesmo, mas não pedindo socorro, antes, se atando aos band-aids encardidos de ‘miseriscórias’ do que em si criar pode não apenas salgá-lo (impurezas no plâncton), mas salvá-lo (contracorrentes literais) e ainda revelá-lo criativo e contundente para nós no inteiriço da arte que lampeja lucidez. Um poetaço dizendo seu veio. Já pensou que inteirança? A poesia dele tem fome como fogo, tem fundo como água, tem inteirezas como o ar que mostra seus surtos criativos em alvéolos que respiram talento, vivacidade. 

Rês piram? Pois o mochileiro das galáxias poéticas RICARDO POZZO com seu Petit Pavê abre as lanternas (dos afogados?) criativas, sangra os alvéolos interiores. Aliás, a bem dizer, alvéolos recebem esse nome por se parecerem com os favos de mel de uma colmeia, e são alvéolos propriamente ditos estruturas de pequenas dimensões as quais estão localizadas no final dos bronquíolos, onde se realiza a troca gasosa, como cavidades diminutas que se encontram formando os pulmões nas paredes dos vasos menores e dos sacos aéreos. Neles realizam-se as trocas gasosas entre o meio ambiente, o ar e o organismo, através do sangue. Logo, falando sério, um achado o nome do livro do Ricardo Pozzo, Alvéolos de Petit Pavê, com suas pequenas pastilhas (pedrentas?) de poética ao seu feitio e trabalho, gases e gozos. Ah, “estranhos são os caminhos noturnas dos homens” (Georg Trakl). Imaginem então, os do homem poeta destrambelhado em seu tear de fogo-fátuo com seus núcleos de abandonos contemplativos... seus dezelos viajosos, escárnios de óticas narrativas em prosa e verso, suas distorções com escurezas e ainda assim poemas... poemas assustadoramente poemaços.

A matéria bruta da poesia, trabalhada entre o rato, a morte, a fome. Dilacerações de partículas? Poesia estranhosa, por isso mesmo verdadeira, meio acid jazz em cortes navalhados, “Mas o simples olhar//Inveterado//ao reflexo do espelho//inviolável//de seus pensamentos espectrais”.// (Fragmento, Grisálida). Poemas carcaças, arre-medos, cracas, cascas de feridas desse pavê ferido & ferrado? Ai de nós. Farsas, véus, entrecortes. Alvéolos sangram e singram, e soçobram, e res-piram - ins-pirações do autor. Todo puta poeta tem um software descalibrado dizendo de sagas, neuras, ranços, errações, sublimações telúricas, faca entredentes nas cerrações urbanas de contemplações como arco de pua? Ah ele vigia as noturnices e grava sobre as noites corrompidas que infestam a alma humana... E diz (com suas 'cantárias' ora açucenas, ora gangrenas ou mesmo até sangria desatada):

Fotografia de Decio Romano
São ríspidos
caminhos
que
nossos passos

percorrem
rumo à
desilusão



Ele saca – mãos ao álcool? Não. Mãos ao átomo? Melhor seria mãos aos alvéolos literais – a caixa preta da cidade cinza, diz de negredos humanoides e currais de poses, da sobrevivência possível, quadro a quadro, cena a cena, com uma faca elétrica que ainda açoda, acorda, destrincha e fere a pele da palavra com sangue sobrevivencial, tudo meio 'dejaflux', 'alucicênico', 'esquizofrêmitos'... Drones literais? E pessoinhas. Com peçoinhas... Ele, que nasceu em Buenos Aires e foi dis-parar no Paraná de gralhas azuis, feito poeta, fotógrafo e músico, ora como um dos noiteadeiro organizadores do Vox Urbe, projeto literário do WNK Bar, além de editor assistente do Jornal Relevo, e cuja poética tem isso de fotogramas, saques rápidos, de acordes dissonantes, de joios sociais e periclitações maceradas de intantes-trevas, instantes de vidas entregues (mortes), instantâneos toddy com salitre e cicuta, pólvoras em alvéolos em polvorosa criacional, feito um atiço... Abstêmio e blefador, ele toca fogo na canjica dessa Curitiba destrambelhada, com seus estranjas na boca maldita do criar perguntamentos em 'bijutelíricas', feito esses alvéolos em petit pavê. Escrevendo ele vigia o insondável, nomina os escarros e disparates, ilumina percursos, verga vazios, toca almas, desvãos delas, veicula clichês e máscaras. Petit pavê agora também em nele, não apenas pedras portuguesas quase sempre mal-assentadas à res do chão de uma Curitiba em preto e pranto, mas de uma urbe que ele adotou, e nela se finca ele a lavrar arte, imagens, tons e timbres e tais.

Aliás, como muito bem diz o Rodrigo Madeira no prefacio do seu livro: “Não é descabido nenhum considerar a poesia um olhar novo sobre algo muito antigo. Um redescobrimento. Um tipo de ponte e um tipo de fratura. É dela esta capacidade de arejar ou cortar o oxigênio através do deslocamento e da mobilização da linguagem. É dela este poder de iluminar a noite com o fósforo de uma palavra (inflamado por fricção), mas também de, de repente, nos engravatar com uma interrogação e depositar uma igrejinha sobre nosso peito. De nos esbofetear com nossa precariedade e nos encorajar a viver as nossas vísceras”.

Pois Ricardo Pozzo põe se a si pra fora, no olhar o outro humano (humano?) em contundências e situações bizarras e bisonhas, centrando o olhar especial e sensível depois desgarrando-os em palavras, entre esse pulmão podre que é a reles existência, o curtume de sobreviver, a coivara do que nos restamos de nós, tudo junto e misturado, alvéolos assim entre o ar e o sangue da escória do espaço, a raça humana, em suas contundências, e que Ricardo Pozzo ainda faz de cada enfoque um novo petit pavê, assentando-se lume e vida num projeto que acabou livro e que o revela para nosotros, hermanos pés vermelhos um puta poeta no bordel excelência desse ‘mondocane’, nessa sub-sobrevivência ‘barra brava’. Bem-vindo a bordo desse Titanic existencial, cara pálida. Os que vão sobreviver em terra de ameríndios e afrobrasilis são lacunas. E poemas. E alvéolos. Deixa sangrar!

Silas Corrêa Leite  

Silas Corrêa Leite, Pós-graduado em Cultura, Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação na instituição de ensino USP - Universidade de São Paulo, é autor de  GUTE GUTE Barriga Experimental de Repertório, 2015, Romance, Editora Autografia, Rio de Janeiro. 
Site: www.artistasdeitarare.blogspot.com/ 

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