Floriano Martins: Precário Hábito das Revelações - e outros poemas

• PRECÁRIO HÁBITO DAS REVELAÇÕES

Sempre nos amparamos nas mais frívolas razões
de evocar ou não um pecado para cada existência.
Somos os bufões de tantos escrúpulos e canduras
com que levamos a metafísica a crer no homem.
Quantos não passamos da presunção de um espírito
revitalizado sob o epíteto diabólico do fiat lux?
Nenhum de nós escolhe ser o contrário do outro.
Cada fragmento nosso imagina sua ideal função.
Se o mundo é portador de um significado, percorro
a riqueza de teus presságios, o olhar fora do rosto.
Se o homem é receptivo ao que lhe é contrário,
não pode temer a morte mais do que a própria vida.
Vem colher comigo as letras proscritas que ignoram
a nossa presença em seu mundo sem memória.
Por alguma razão estamos aqui. Como uma acelga
ou a crina de um deus, o sol ou a falsificação de tudo.



• CARTAS DE UM DEVANEIO OCIOSO

Trouxe comigo as duas versões de teus pés.
Uma delas era a discreta figura de um totem
fingindo bailar em uma noite repleta de magos.
A outra se recusou a contar o que fosse
antes de provar uma iguaria de imagens fortuitas.
Teus pés relutam em revelar a duração da vida.
Concentrado em sensual astúcia um deles me ilude
com talentos ocultos e uma prudência maculada.
Beijo o polegar do outro evocando sua ambição.
Se fecho os olhos suas gravuras se harmonizam.
Do contrário, não me tomam em consideração.
Os teus pés insistem em percorrer um mundo
alheio às trilhas que cavouquei para sua palma.
E quando falam comigo eu ainda não existo.
Se o futuro aduba sua obsessão por nós dois
leio que um dia por aqui passamos as páginas
de uma previsão ociosa. De tanto beijar teus pés
os magos consideraram uma arte esquecer o tempo
dos verbos que pisaste com uma versão ou outra.
As melhores riquezas são frutos da desobediência.
Eu beijo os teus pés, sem indagar para onde vão.


• UM RETRATO CÉLEBRE DO OCULTO

Os pombos relutam. As estrelas perdem a fé.
Amontoei retratos na pedra. Fato ilegível.
Faz tempo que não te vejo em meus sonhos.
As praças redistribuem seus livros. Chove.
Há muito sou um ramo de tua instabilidade.
Desapareces de mim aos poucos. Um proveito
de páginas que ninguém soube explicar.
Cortinas são uma contaminação de imagens.
A luz não revela mais do que a escuridão.
Cada uma encoraja seus pormenores,
como uma fatalidade pecaminosa, uma fraude.
Há muito meus olhos aprenderam a não ver.
Antes mesmo que as estrelas perdessem a fé.
Os pombos sonham com deuses menores.
Retratos são a última fonte de legibilidade.
Não faço a menor ideia se habito teu desejo.
Mas estou aqui. Chove. As praças somos nós.

Fotografia de Isabel Furini
















• UMA OBRA PRIMA DA CONFUSÃO ENTRE DOIS REINOS

Um dia estive a ponto de dizer que te amo.
Quase recorto uma advertência apressada
na qual confessara meu amor impossível.
Transcrevi para inúmeras páginas soltas
que as dissonâncias são um estímulo,
uma vida dedicada às discrepâncias,
como saudável mecanismo de insubmissão.
Somos a denúncia de um mundo irreconciliável.
A refeição atormentada de muitos deuses
que se perderam entre símbolos inertes.
Quando começo a falar assim as tuas mais
secretas sociedades se reúnem para a pugna
de meus erros e outras memórias propagadas.
Sei que já não posso lembrar que te amei um dia.
Um de nós registrou em opúsculo a indisciplina
de nossas razões comuns, o ideal clássico.
As improváveis consequências do amor.



__________



Floriano Martins (1957). Poeta, ensaísta, tradutor, editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/) e ARC Edições. Contato: floriano.agulha@gmail.com.

Comentários