Robson Lima: O abUSO das reticências nos textos poéticos

Lendo muitos poemas por todo o Brasil, pois eu tenho o vício de comprar livros de poemas de artistas locais em cada cidade que visito, notei algo digno de um breve, mas importante artigo: o abuso no uso das reticências nos textos poéticos. Então, lá vai mais um artigo no intuito de colaborar com a produção poética brasileira, paranaense e curitibana.

Fotografia de Isabel Furini

O velho jargão e a perigosa armadilha de que em poesia vale tudo muitas vezes leva o autor a se esquecer de que há certas convenções da linguagem que, se subvertidas, devem sê-lo em função de alguma construção estética, do contrário a pretensa subversão se apequena e se transforma em ignomínia. Muitos poetas utilizam as reticências indiscriminadamente por pura falta conhecimento do efeito negativo que elas têm sobre os textos, se mal empregadas, é claro.

Camilo Castelo Branco em seu clássico romance filosófico intitulado “O Que Fazem Mulheres”, publicado em 1858 já ponderava:

“Há reticências que não dizem nada. A literatura merceeira, para justificar o adjetivo, inventou as carreiras de reticências, as quais correspondem aos pesos roubados da mercearia.” (CASTELO BRANCO, 1967, p.89)

Reparem que Camilo afirma que o uso desmedido de reticências rouba da literatura (mercearia) os pesos (valores). Em outras palavras, o uso desvairado de reticências é pura falta de domínio estético da escritura-obra-de-arte. Há um roubo de literariedade quando há exagero no emprego de um recurso expressivo que subtrai palavras, pois a palavra é a matéria prima da Literatura.

Para se subtrair uma palavra de um poema é preciso calcular o “peso” e o efeito estético dessa subtração. O não dito precisa ser tão calculado quanto o que é dito. A linguagem não representa o real, mas, também, não consegue se distanciar dele. Por isso o desvelo com o não dito, com o silêncio.

Podemos afirmar que há dois tipos de silêncios: o silêncio que antecede a palavra, o Fiat Lux do processo criativo, e o silêncio que vem após a palavra, aquele que silencia o que vinha sendo dito. Sendo assim, a palavra que procede do silêncio “é um grito: o que todas as convenções sociais nos ensinaram a calar...” (BARTHES, 1986, p.160.). Já o silêncio que procede da palavra é “a fala de um ausente”. (FREUD, 1974, p. 110.). Portanto entre o grito e a ausência encontramos as reticências. Apesar de o silêncio ser “necessário à significação” (ORLANDI, 2007, p. 45), é preciso saber calar e saber calar requer o equilíbrio entre o silenciar, o não dizer, o subentender e o sugerir.

Por isso escrever em versos não é fazer Literatura. Para se fazer Literatura é preciso calcular o dito, o não dito e o não dito que, em certa medida, é dito. Dada essa circunstância, os que se intitulam poetas podem espernear o quanto quiserem, mas falar em forma de versos jamais foi e jamais será Literatura Obra de Arte. Ponto final.

Sendo assim, vamos ao emprego das reticências na poesia. Eu citaria diversos autores para exemplificar o mau uso desse importante recurso linguístico, afinal há um monte de livros escritos em verso sendo despejados pela cidade, mas opto por criar exemplos, de modo a não expor ninguém. Bem, de forma bastante prática e resumida, podemos dizer que, no poema, as reticências  podem ser usadas:

a) Para indicar a interrupção de uma ideia:
Exemplo:
Quando você me falou...
Não, esquece.

b) Para indicar um desvio na linha do pensamento:
Exemplo:
Eu preciso disso...
Tantos anos esperando.

c) Para sugerir a continuidade daquilo que está sendo dito:
Exemplo:
Eu sei que você sabe... Eu não posso confessar tudo.

d) Para prolongar inflexões exclamativas ou interrogativas:
Exemplo:
A morte não é nada !?...

e) Como recurso melódico para ornamentar uma pausa:
Parece que tudo já passou..., mas o tempo teima em voltar.

f) Para anteceder uma palavra ou expressão no intuído de destaca-la.  
Exemplo:
...O que está me dizendo?

g) E finalmente para marcar inflexões de ordem emocional, tais como hesitação, timidez, dúvida, medo, etc.
Exemplo:
Não sei se devo...
É tarde demais...

Alguns poetas só utilizam as prerrogativas constantes na letra G, mutilando os versos com pausas desnecessárias, que destroem a melodia e inundam a semântica de sentimentalismo de quinta categoria. Reitero que há muitos outros usos das reticências, mas, aqui, utilizei apenas aqueles mais exigidos pelo gênero poema.

Espero que este artigo raro a respeito do tema possa trazer mais segurança a quem se aventurar a utilizar reticências em seus versos. Sempre há os bons profissionais que vão se valer muito do presente artigo para rever sua escrita, seus sons e silêncios. Esses, certamente, pouparão seus leitores dos solavancos quixotescos que o uso desenfreado de reticências pode provocar.
Um abraço a todos, neste caso, sem reticências!

Há um roubo de literariedade quando há exagero no emprego de um recurso expressivo que subtrai palavras, pois a palavra é a matéria prima da Literatura.

Professor Robson Lima

Robson Lima é curitibano, nascido no bairro da Água Verde. É professor de Língua Portuguesa, Literatura, Leitura de Múltiplas Linguagens e um estudioso da poesia paranaense. Autor de livros didáticos, também é Consultor Educacional e Assessor Pedagógico nas áreas de Linguagens e Comunicação, ministrando palestras em todo o território nacional. Poeta, músico, declamador, ator, Crítico Literário e transador de palavras, Robson Lima é um amante dos versos, artes e artemanhas. Autor dos livros Wintervalo (poesia) e Leitura em Movimento: da letra ao letramento. (livro que versa a respeito do aprofundamento da leitura).
Fanpage: www.facebook.com/criticabocamaldita
Contato: minhalinguanatua@hotmail.com ( Língua Portuguesa, é claro!)

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. 1986. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. São Paulo: Saraiva.
AZEREDO, José Carlos S. de. 2009. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha.
BARTHES, R. O Rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1986.
BECHARA, Evanildo. 1982. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo: Cia. Edit. Nacional.
______. 2009. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: lucerna/Nova Fronteira.
CAMARA JR., Joaquim Mattoso. 1974. Princípios de Linguística Geral. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica.
CASTELO BRANCO, Camilo. O Que Fazem Mulheres. 8ª ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1967.
CUNHA, Celso Ferreira da. 1970. Gramática do Português Contemporâneo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares.
______. 1972. Gramática da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: FAE.
______. 1985. A Questão da Norma Culta Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
______ & CINTRA, Luís Filipe Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lexicon.

FREUD, S. Além do príncipio do prazer. Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
HENRIQUES, Claudio Cezar. 1998 “O Cânone Linguístico-Literário na Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara”. Idioma, 20. Rio de Janeiro: Centro Filológico Clóvis Monteiro/UERJ.
______. 2003a. “O Cânone Linguístico-Literário segundo a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Carlos Henrique da Rocha Lima”. 
LIMA, Carlos Henrique da Rocha. 1992. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio.
LUFT, Celso Pedro. 2009. Moderna Gramática Brasileira. Rio de Janeiro: Globo.
NEVES, Maria Helena Moura. 2000. Gramática de Usos do Português. São Paulo: Unesp.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 
PERINI, Mário. 2010. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola.






Comentários

  1. Falou com conhecimento. Obrigada pelas explicações. Sou nova na poesia e quase tudo me encanta em matéria de versos. Gosto de rimas, do estilo de Shakespeare, de sonetos, de poemas com temas.

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    1. Prezada Neyd Montingelli,

      Algo só tem valor diante de olhos valorosos. Obrigado por seu valoroso olhar sobre o meu artigo. Continue encantada pelos versos e encante o mundo de poesias.

      Cordial e poeticamente,

      Professor Robson Lima

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