Silvia Maria de Araújo: Van Gogh - Paralelos de uma vida

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Van Gogh comunicou-se pelas cores de uma linguagem anímica. Perseguiu seu sonho artístico com o vigor de pinceladas amarelas, ocres e marrons, tons da frustração de uma vida, qual trágica obsessão. Matizes de púrpura espreitavam a realidade a partir da sua própria “caixa preta”, cor de fundo nas telas e na alma, pois ao nascer, em 30 de março de 1853, Vincent recebeu da família enlutada o nome do primeiro irmão, trauma que o acompanhou e pôs tonalidades cinzentas em um céu por ele nunca experimentado. Obstinado, uniu a tradição familiar no mercado de arte à criação intermitente e peregrinou do interior da Holanda à sua capital, de Bruxelas a Londres e a Paris, nos melhores anos de juventude. Desenhava, então, cenas míticas do verde-azul dos rios no seu entorno: a correnteza nas curvas do Tâmisa, as margens do Sena, as pontes do Ródano.

Vincent embriagou-se de realidade pela brecha da observação arguta: o agito das águas, o balanço das árvores, como se o ar em movimento fosse o autor da sua melancolia. A densidade e a profundidade do ar dão os efeitos de luz que a sua pintura alcançou. Mesmo sem cor, o ar se faz presente na atmosfera diáfana de seus quadros, inspira-o diante do belo: “Experimento uma terrível clareza em momentos em que a natureza é tão linda”. Na homogênea transição entre a concretude do objeto/pessoa/natureza e o contexto das telas, Van Gogh atingiu a autonomia da cor, um fenômeno de múltiplas dimensões, como previra a teoria de Delacroix.

Por curto tempo, um misticismo intrínseco cobrava-lhe uma possível vocação teológica para seguir os passos do pai, pastor. Mas, a inquietude, sua companheira persistente, afastou-o das mulheres pelas quais se apaixonou em escolhas passageiras e intensas, deixando apenas a dor. O seu sofrimento incompreendido, um estar no mundo e dele se evadir constantemente, estão nos tons castanhos da produção artística não reconhecida em vida, a dar vazão à alma conturbada, sempre arredia a contatos próximos. No entanto, Van Gogh captou com sutileza de detalhes, abertos a pincel forte e tinta definida, a gente simples das pensões, dos cafés, do comércio. Trabalhadores nas ruas e nas paisagens da França – o carteiro, o semeador, o tecelão, o comerciante, o médico, o camponês – receberam os traços do impressionismo da sua arte confessa: “Gosto muito mais de pintar os olhos das pessoas do que catedrais”.

A primeira exposição, em 1887, foi uma coletiva. Nada vendido, sequer uma obra. Em toda a sua vida, apenas uma. Nem os girassóis, símbolos da sua arte, foram capazes de se impor no mercado. Impuseram-se, sim, as sombras do seu interior na explosão de luminosidade da vida que alternava real e imaginário, consciência e inconsciência, mescla insana a abrir-lhe sulcos na alma e nas telas. A angústia escorria amarela da paleta dependente de tintas compradas com a ajuda de Theo, o irmão mais novo, que lhe deu apoio emocional e material, convicto do seu valor como homem e artista. Com ele esteve nas adversidades que os castigaram. Trocaram cartas e, nelas, Vincent registrou seu grito crônico de socorro por autoafirmação: uma natureza morta nos avermelhados estertores dos frutos maduros.

O retirar-se do convívio na litorânea Arles para períodos de tratamento clínico, em Saint Rémy, não afasta Van Gogh do cavalete e pincéis, ao contrário, ativa-o a uma compulsão de milhares de pequenos toques coloridos, divididos na tela, mas plenamente integrados pela visão do espectador. Também ele se vê assim em autorretratos de 1887 e 1889, após cortar a orelha numa de suas crises psíquicas. Críticos julgam as obras dessa fase as mais expressivas. No contorno violeta dos lírios lilases, o seu olhar do mundo é contorcido como os verdes ciprestes escuros ao vento, enquanto a nauseante maresia dos tons pastéis confunde as buliçosas aves negras no céu que gira em delírio azul. Aos 37 anos, Vincent Van Gogh fugiu do tormento e tingiu de vermelho o leito branco, síntese de todas as cores. Tombou suavemente na profusão de amarelos dos tufos de trigo ceifado. Foi uma libertação.

A sensibilidade contagiante do gênio Van Gogh continua a inspirar percepções do belo, como nos poemas de Isabel Furini, que dão provas de estar também nas letras, a linguagem das cores. Por ser universal, vivaz, eterna, vai além dos sentidos, toca a alma.
Silvia Maria de Araújo





Silvia Maria de Araújo é socióloga, professora aposentada da UFPR. Autora de Sociologia (2014) e de Projeto de Vida: uma visão ampliada (2016).

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