Neyd Montingelli: Pinga para os perus

Quadro de Roberto Bona


A caminhonete que um dia foi vermelha, toda amassada e fazendo um estrondo de trovão sobe a estradinha. As crianças escutam lá do quintal. Dava a impressão que todos no bairro escutaram, tamanha barulheira fazia aquela geringonça.

O menino de cabelo raspado com exceção de uma franja, corre abrir o portão.
Seu Jacinto entra arranhando a primeira marcha e uma fumaça preta sai do cano de escape.
Empoleirado no muro o guri grita e ri daquilo tudo.

Um homem grande, com a cara cor de rosa, usando uma blusa um tanto florida e amarrotada, dá uns socos na porta, sai e fica em meio à fumaça e ao pó da estradinha. Tira um lenço muito sujo do bolso fundo da calça larga e passa na testa suada.

- Ei piá. Cadê sua mãe? Avise que eu trouxe os bichos.
Ouve-se então uma enorme reclamação da carroceria do veículo. O som era alto e parecia uma briga feroz.

O motorista tira uma barra de ferro do banco da caminhonete e bate na lateral, fazendo um barulho maior que o som que vinha de dentro. Os bichos acalmam-se por alguns instantes.

O menino, completamente assustado, sai em disparada para os fundos da casa. Encontra a jovem mãe, pois ela já havia escutado o barulho e tratou de desligar o fogão para não queimar o almoço antes de sair de dentro da casa.

- O seu Jacinto chegou, mas tem uns “bichos que estão gritando” no caminhãozinho!
A mãe ri e acompanha o filho ao mesmo tempo em que chama as filhas que estão nos fundos para irem receber os “bichos que estão gritando”.

A avó que mora na casa ao lado também vem para a recepção dos seres. Afinal aquele dia parecia ser um tremendo dia especial!

A menina de cabelos claros, com grandes olhos verdes, usando calça brim coringa e uma camiseta muito grande para o seu tamanho, desce a rampa da entrada da casa arrastando a irmãzinha chorona pela mão melequenta. A pequena só parou de chorar quando chegou perto do barulho que vinha da carroceria da caminhonete.

- Chegou cedo seu Jacinto. Pode descarregar. Vou abrir o portão do galinheiro.
Como assim?

Em volta do portão já estava uma pequena multidão de vizinhos curiosos. Todos se apertando no muro para ver o que tinha na caminhonete que fazia aquela algazarra.

Como abrir o portão do galinheiro?

As três crianças ficaram grudadas com a avó que olha curiosa. Elas não estavam entendendo.
Por que precisa abrir o portão para colocar galinhas no galinheiro? É só jogar por cima da cerca, oras! Ou não?

Seu Jacinto trava uma batalha com a barriga para subir na carroceria. O rosto fica vermelho desta vez e o lenço sujo vai enxugar o suor até da nuca cheia de dobrinhas. Ele arrasta uma lona escura e cheia de buracos para o lado deixando à mostra umas caixas enormes de tela e apavora uns seres negros cheios de penas.

Da multidão em volta ouve-se:
- Nossa! Que lindos! Que enormes! São perus.
Claro que são perus. Qualquer um reconheceria um peru. Imponente, majestoso, senhor de si, negro e brilhante, com as penas compridas e com a cabeça e barbela que vão do azul ao vermelho e até roxo.

Por que peru na casa da dona Cice? Não. Por que tantos perus na casa da dona Cice?
É, logo o seu Jacinto começou a tirar um, dois, cinco, enormes perus negros daquelas caixas; amarrava os pés deles e dava para o ajudante sujismundo. Este moço malcheiroso saía correndo com a ave nos braços e os dois gritavam. Parecia concurso de quem gritava mais alto.

No portão do galinheiro ele desamarrava os pés do coitado e soltava no terreiro. Fez isso cinco vezes e em todas, ele gritou mais que os perus. No final as pessoas que estavam no portão bateram palmas para o desempenho do rapaz sujo.

Dona Cice, a avó e as três crianças estavam admirando os enormes perus no terreiro do galinheiro. As 10 galinhas estavam tão assustadas quanto as crianças, não pelos perus. Galinha não tem medo de peru. Elas estavam assustadas pelo maluco do rapaz sujo que tanto gritava e pela falta do galo, pois a dona Cice deixou o enorme galo vermelho e amarelo preso no galinheiro. Elas precisavam da presença do galo.

O galo não se conformava de estar preso enquanto as galinhas estavam ali fora, à mercê dos intrusos intrometidos.

A avó explicava para as crianças o que estava acontecendo com os grupos familiares das galinhas e dos perus.
Finalmente a mãe abriu a portinhola e o galo foi solto.

O menino saiu em defesa do galo:
- Mãe, esses baitas perus vão matar nosso galo. Olha o tamanho deles! O Sargento é grande, mas os perus são bem maiores.

A avó interveio para sossegar o pequeno Mig:
- Não se preocupe. Você já vai ver o que o Sargento consegue fazer.

E dito e feito. Assim que o galo sai pela pequena porta, vai com tudo em cima dos perus. Briga com todos os cinco. Põe ordem na casa e mostra quem manda naquele terreiro.

As crianças ficam tristes em ver a briga. Não querem que nenhum deles saia machucado. A avó joga milho em um lado e todos esquecem as desavenças e vão fazer um lanche. Ela explica que apesar do tamanho, peru não briga com galo porque perde.

Ninguém perguntou o porquê de todos aqueles perus no galinheiro. Afinal, na cabeça de criança:
“Nosso galinheiro, nossas galinhas, nossos perus”. Pronto simples assim.

Os dias passaram e a pequena família viveu em função das enormes aves barulhentas. Muita comida, restos de comida, milho debulhado dos sabugos pelos dedinhos delicados das meninas; verduras, legumes e frutas colhidos da horta e cortados em pedaços pequenos pelas mãos ágeis da mãe e da avó.

E o irmão? Fazia o quê?
Mig colocava água no coxo. E não deixava de atormentar os coitados dos perus só para ver as barbelas ficarem infladas e as penas eriçadas. Coisas de piá mesmo!

O dia 24 de dezembro estava chegando. As crianças ouviram a mãe conversando com as senhoras da Igreja e combinando serviços, pratos, roupas. Os três filhos ensaiavam com o coral para uma apresentação que seria na Festa de Natal. Estavam ansiosos, mal podiam esperar pelo dia.

No salão da Igreja longas mesas foram montadas. Uma enorme árvore de Natal ficou bem no meio e todos os sábados e domingos as crianças e jovens faziam os enfeites de papel e purpurina. Na última semana ela estava pronta, com os pisca-piscas, as bolas e aqueles chumaços de algodão.

Ficou a coisa mais linda do mundo! Palavras das próprias crianças escritas no mural.
E o jantar?
Todas as mães, tias, avós estavam fazendo algum prato doce ou salgado. Aquele dia 23 amanheceu diferente de todos. Era uma sexta feira no começo da tarde e as pessoas estavam chegando na casa da dona Cice. As crianças estavam tomando o café da tarde e ficaram contentes com a vinda das senhoras da igreja, alguns maridos e os filhos.
Estranho. Estranho, mas divertido.

Começou uma arrumação esquisita nos fundos da casa. Os homens fizeram uma espécie de churrasqueira de tijolos com lenha e acenderam o fogo. Tinha um enorme tacho também. Montaram uma mesa comprida de madeira. E tinha facas, pratos, travessas, temperos, comida, milho, ovo. Nossa! Muita coisa.

Enquanto as mulheres arrumavam essa cozinha “de fora”, os dois homens foram até o galinheiro com uma garrafa de pinga.
Garrafa de pinga?
Ninguém bebe nesta casa, nem as visitas, são todos mórmons! As crianças ficaram olhando es-pan-ta-das.

O Mig já pensou em delatar o ocorrido ao bispo da igreja.

Todos vão empoleirar-se na cerca para ver a atuação dos homens dentro do terreiro do galinheiro, pois os cinco perus exaltaram-se quando eles abriram o portão.


O que eles vão fazer com a pinga?
Os homens cobriram o cocho de água e deixaram apenas uma bacia com pinga para os perus beberem. As galinhas refugiaram-se dentro do galinheiro e ficaram bem quietinhas lá. Dona Cice aproveitou e fechou a portinhola, impedindo que elas viessem para fora.

Os perus correm de um lado para outro, nervosos e agitados. Nenhum deles quer tomar a pinga.

O menino comenta:
- Eles também não bebem nada que tenha álcool. Troca por um suco!
A risada foi geral. Mas a vovó foi esclarecer que os perus tinham que tomar a pinga.
E foi quase uma hora de espera e nada dos danados tomarem um só gole.
Os homens decidem então que seria na marra. Entram de novo no terreiro e encurralam o primeiro peru. Um segura e o outro faz o coitado tomar a pinga por um potinho. Tomou tudo! Todos tomaram.
Aí foi a espera.

Aproveitando a luz do dia, foram colher uns pêssegos no quintal e sentaram na escada da entrada para comer as frutas doces e amarelinhas esperando que os perus começassem a “trançar as pernas”.

- Por que tem que esperar os perus ficarem bêbados? – Perguntou o menino de franja única.

- Para que não vejam o amigo sendo degolado. – Diz o filho de um dos homens que embebedou a perusada, e faz um som e um sinal de degola assustador com a mão. - Shhhhhhhimmmm!

- Ei, pode parar com isso Zéca. Pare de assustar o Mig. Não é nada disso. É para a carne ficar mais macia. Só isso.

- Mas, vocês vão matar os nossos perus? Todos eles? Por quê?

- Ué? Você não sabia? Mas é um bocó mesmo. Por que você acha que eles estão aqui na sua casa? Eles são os perus do Natal da Igreja! Amanhã nós vamos papar todos eles na Ceia de Natal. A minha mãe está fazendo recheio com milho e ervilha que eu adoro.
                                                                             *




Esse conto de Neyd Montingelli faz parte do livro "Dançando em Paris e outros contos".



NEYD MONTINGELLI: Neyd Montingelli nasceu em Curitiba é casada e tem 4 filhas. Formação em Psicologia, Nutrição, Processamento de alimentos e Laticínios. Tem 15 livros publicados e participa em 65 antologias. Foi premiada em concursos literários de contos, crônicas e poesias. Membro da ALUBRA e ALB/Araraquara, do Núcleo de Letras e Artes de Buenos Aires e Lisboa, Academia ALMAS/Ba, do Centro de Letras do Paraná e Embaixada da Poesia. Troféu Cecília Meireles, Garcia Lorca, Cora Coralina, Casimiro de Abreu, Revista Carlos Zemek, Melhores Cronistas; Medalha Monteiro Lobato; Medalha Melhores Poetas da Magico de Oz. Seu livro Cavalos e contos recebeu prêmio de melhor livro de contos pela Literarte, em Ouro Preto. 

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