Clevane Pessoa: Três poemas inéditos


Fotografia de Isabel Furini
















Das origens

Da janela, avisto o mar  em noite de plenilúneo.
Estou em Olinda, e  da escadaria da igreja, deslumbram-me as joias  na água,
 ouro puro e dúctil,  gemas  várias , prata líquida, desenham mistérios
no dorso das ondas , que não posso decodifidicar.
Já fui sereia  , mas de rio.
Já fui estrela, mas celeste.
Já fui cavalo, mas não marinho.
Tenho concha, mas não de abalon.
Tive pai, mas não era Netuno.
E fui bela como Vênus, mas não nasci da espuma.
Então, por que , miseravelmente,
não tenho coragem de  mergulhar
e trazer meus tesouros  ou voltar a ser em minha essência líquida?

Clevane Pessoa de Araújo Lopes

















Duo

Em minha corpografia  de montes, vales, luas, fendas,savanas,
bosquedos, jardins secretíssimos, os rios azuis  são vermelhos,
com peixes céleres  na contramão, indo desovar destinações,
um caracol rosado e úmido, escapa da tua boca  morna e escreve
com tinta invisível aos demais, nossa história.
Arfo, somos colher e garfo,
És  búho e sou lechúza,
amamos a noite sem idade , sentinelas  do entresonho
entre  o  anoitecer no véu do ocaso  e as saias rosadas da aurora.
Abre tuas asas, tatala- e cobre-me para que eu não sinta frio ou medo.

Clevane Pessoa
Belo Horizonte, Brasil, 25/04/2017



Crianças na calçada

A criança loura encolhida sobre o papelão dobrado, treme e sonha
com um trem comprido, onde a mulher recorrente
mostra o seio farto e branco
que a boquinha sedenta e faminta suga ávida/mente.

A outra , com uns dez anos, debaixo de um caixote de pinho,
sente-se protegida , pernas fletidas, mão sob a face , travesseiro de nada,
mas agita-se angustiada com as lembranças cruéis- e grita
quando o invasor suspende o caixão,
aparentemente libertando-a do pesadelo, mas ri sardônico.

Um adolescente vigia o outro metade da noite.
E quando o mais velho ressona, estende a mão esquálida
e rouba fragmentos de pão, que deixa dissolverem-se
em sua boca, com sabor de quase cousa alguma.

Perto, baratas em batatas podres, um rato em correiras,
E o horror rondam as pobres pessoazinhas que moram na rua!
Eu, você, nós, dormíamos em nossas camas limpas .
Sem sequer pensar em salvá-las.Invisíveis à nossa percepção .

Clevane Pessoa



Clevane Pessoa de Araújo Lopes: Escreve e desenha desde a infância.Militou na imprensa de Juiz de Fora-MG, nos anos de chumbo, mantendo a página Gente, Letras & Artes e a coluna diária Clevane Comenta, na Gazeta Comercial e em “A Tarde’ . Foi editora de Literatura e Arte do tablóide de vanguarda Urgente. Atualmente, é psicóloga, ilustradora e oficineira de Poesia.Escrevia e ilustrava  em “Estalo, a revista”, de Belo Horizonte, participava na revista internacional aBarce, plural-da Oficina editores(RJ) e outras.. Tem doze  livros publicados (contos e poemas) ,  30 e-books, participa em mais de 170 antologias, por premiação, cooperativismo ou a convite.Também faz parte de coletâneas e revistas virtuais.Possui capítulos em co-autoria em compêndio de Psicologia... Participa de  saraus e faz recitais de leitura interpretativa, ministra palestras de psicologia ou literatura.. Tem textos e poesias hospedados em muitos sites,além dos próprios blogs.

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