Franco G. Rovedo: Um passageiro especial


Aquele passageiro mudou meu rumo. Meu negócio naquele verão era fazer voos panorâmicos na praia. Voava das 9 da manhã até as 7 da noite, ou mais. O primeiro voo da manhã era feito quase sobre os banhistas para divulgar o serviço. Logo começava a formar uma fila de interessados em voar para ter uma vista que poucos teriam a oportunidade de ter. A Ilha do Mel de um lado, a Ilha dos Currais à frente e uma linda porção do litoral paranaense.

Fotografia  de Cláudio Cézar
A fila de clientes era formada por grupos heterogêneos de pessoas. Jovens ou adultos, ricos ou pobres, todos tinham o sonho de voar dentro de si. Oportunidade oferecida para poucos, uma vez que para se tornar piloto a exigência é muito grande e como passageiro são raras as oportunidades como aquela que eu havia criado em Pontal do Sul.
Depois de um dia movimentado de voos quase sem descanso, resolvi encerrá-los mais cedo e admirar o por do sol, sem companhia. Levei o ultraleve até o hangar e desliguei o motor.
O ouvido ainda zunia quando meu colega apontou para duas pessoas que haviam passado a tarde inteira observando meus pousos e decolagens.
Uma delas era um homem de trinta e poucos anos, cadeirante. A outra, uma mulher que conduzia a cadeira de rodas. Ela aproximou-se e pediu para tirar uma foto comigo no ultraleve.
– Você não quer voar? – Perguntei um pouco desanimado com a ideia.
– Na verdade eu não, mas meu marido gostaria... Mas nunca deixaram, pois ele é tetraplégico e não teria como se segurar.
Era tudo que eu precisava ouvir para meu cansaço desaparecer: um desafio.
Pedi para meu parceiro ajudar a colocar o homem no assento do passageiro, e enquanto amarrávamos suas pernas e braços na estrutura, ele mesmo contava sua história.
Era engenheiro em uma fábrica que havia pegado fogo. O incêndio estava muito violento, e ainda havia alguns funcionários faltando. Ele entrou novamente na fábrica e foi ajudando a retirar quem estava desorientado. Em uma destas incursões, uma grande viga de madeira queimada quebrou e caiu sobre ele. A lesão na vértebra cervical foi irreversível, tornando-o incapaz de qualquer movimento do pescoço para baixo.
Desde o acidente, passava o verão na praia e já havia tentado fazer um voo, mas foi impedido por medo de que algo acontecesse a um passageiro fora do padrão. Poderia ser perigoso. O piloto poderia ser punido. Enfim... Muitas coisas poderiam dar errado.
Ao amarrá-lo com algumas toalhas e o cinto de segurança, só imaginava que ele sabia que o resgate que ele fez poderia ter alguma consequência ruim. Eu também sabia que a nossa atitude poderia ter efeitos indesejados, mas salvaria uma pessoa da prisão em terra firme. Daria a aquele homem a oportunidade de continuar a ter sonhos.
Fiz questão de cobrar normalmente e agir como se fosse a coisa mais natural do mundo levar alguém naquelas condições. Ele não parava de agradecer e nós o tratávamos como um passageiro qualquer.
Decolei com cuidado para observar como o corpo dele se comportaria amarrado daquela maneira. Constatada a segurança, passei a fazer manobras mais arrojadas. Depois de ganhar mais altura, puxei seu braço esquerdo que estava por baixo do cinto de segurança, segurei sua mão sobre o manche, e passei a pilotar assim.

Fotografia de Cláudio Cezar
O por do sol no horizonte e a suave brisa do final da tarde faziam o voo ser o mais perfeito da temporada. Um voo que quase me fez esquecer que tinha um passageiro, e de minha responsabilidade sobre ele.
Olhei para o seu rosto e vi um sorriso da mais pura felicidade e lágrimas de emoção incontida, talvez muito semelhante a aquelas dos familiares das pessoas que ele salvou.
Naquele momento também me senti um herói e descobri que os sonhos são algo tão importante quanto à vida. Sem eles... Morremos um pouco mais.


Comentários