Isabel Furini: Entrevista com o escritor ADEMIR DEMARCHI

Nosso primeiro entrevistado, Ademir Demarchi,  nasceu em Maringá-PR, em 7/4/1960 e reside em Santos-SP. Formado em Letras, tem doutorado em Literatura. Editou as revistas de poesia BABEL (2000-2004) e Babel Poética (2010-2012, projeto premiado em 1.o lugar entre outros 170 pelo Ministério da Cultura para mapeamento da poesia contemporânea), o selo Sereia Ca(n)tadora, de livros artesanais, com 30 títulos publicados entre 2010-2013. Publicou: Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (com 26 poetas, Curitiba: Imprensa Oficial, 2002); Os mortos na sala de jantar (Santos: Realejo Edições, 2007 – prêmio de publicação do Governo do Estado de São Paulo); Passeios na Floresta (Porto Alegre: Editora Éblis, 2007; Lima: Amotape Libros, 2013); Do Sereno que Enche o Ganges (São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007; Lima: Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012); Ossos de Sereia (YiYi Jambo, Assunción, Paraguay, 2010; Santos: Sereia Cantadora, 2012; Viringo Cartonero, Lima, 2014); e O amor é lindo (Sereia Cantadora, Santos, 2011); Pirão de Sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (Santos: Realejo, 2012 – prêmio de publicação da Prefeitura de Santos); 101 Poetas – Antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX (2 vol., Biblioteca Pública do Paraná, 2014) e Siri na lata (crônicas reunidas, Santos, Realejo, 2015, prêmio publicação da Prefeitura de Santos). Tem inéditos Seleção das Tradições Peruanas, de Ricardo Palma (prêmio de bolsa de tradução do Governo do Estado de São Paulo); A tênue película que nos separa deste mundo (contos, prêmio de escrita do Governo do Estado de São Paulo); O amor é lindo (poemas).
         
                                                        *******************

Alguns observam com alegria os novos grupos poéticos que estão surgindo em Curitiba. Outros olham de maneira crítica. Temem que poetas despreparados (alguns deles investem muito tempo em promover seus livros e poucas horas em lapidar suas obras), poetas sem conhecimento técnico, possam afastar as pessoas. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

- Vejo com otimismo o surgimento desses grupos, pois significam novos leitores, pessoas que se sentiram motivadas a ir além da leitura e experimentar a escrita e que buscam uma interatividade social, novos relacionamentos e novas leituras do passado e do presente. Em ação alteramos o mundo que nos cerca e somos alterados por ele, assim é motivador constatar que isso acontece a partir da literatura. Logicamente a leitura crítica, o aprendizado, são desejáveis, porém não vejo a imaturidade ou a inexperiência como impeditivos, pois acho mesmo que os jovens ou mesmo os maduros e todos os inexperientes devem publicar. Falo isso da minha própria experiência, pois lá pelos 18 anos, no fim dos anos 1970, publiquei livretos em mimeógrafo, tal como era possível naquele momento, e depois rejeitei essas publicações porque as considero ingênuas e imaturas. A publicação faz parte de um processo formativo e não é inútil, pois encontra seus leitores, gera uma interatividade. Vivemos num país de analfabetos (75% da população, sendo 8% absolutos e 68% funcionais), portanto qualquer iniciativa de leitura, de escrita, de publicação podem ser considerados atos subversivos, pois vão contra esse estado de coisas que é a miséria proporcionada pelo desconhecimento, pela ignorância, pelo analfabetismo, pela corrupção. E a poesia é a forma literária mais subversiva, pois é o grau mais complexo da linguagem, onde toda experimentação é possível, além do fato de que não é aceita pelo mercado que não a considera comercializável, daí que exista em nichos, através de pequenas editoras e edições independentes. Não vejo isso como problema, mas como uma característica potencializadora. Logicamente, como escritor e crítico, desejo que as pessoas busquem conhecimento, tenham autocrítica e opinião sobre si e sobre os outros, pois a literatura é muito mais que o mero confessionalismo – por isso gosto muito de uma afirmação do filósofo francês Gilles Deleuze, que disse um dia que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”.


No começo do século XX o modernismo quebrou regras, padrões, costumes. Libertou os poetas da métrica e dos caminhos já trilhados. E na atualidade? Quais são as estradas poéticas que dominam o cenário mundial do século XXI?

- O momento contemporâneo é um dos mais ricos da história, pois é de total liberdade estética, sem predominância de nenhuma das que se possa imaginar que existam. É uma conquista, pois temos como nunca imensas bibliotecas às pontas dos dedos e à frente dos olhos, basta ler, pesquisar. Hoje um poeta pode dedicar a vida a escrever sonetos e, no meio da experiência pode radicalizar ainda mais passando a escrever numa linguagem de cem anos antes, tal como tem feito Glauco Mattoso, que já é, inclusive sendo cego, o maior sonetista do país e provavelmente do planeta, com cerca de cinco mil sonetos escritos. Trata-se de uma exorbitância admirável, podemos considerar, porém a capacidade expressional dele e de experimentação de linguagem com essa forma é impactante, bastando dizer que ele é criativo, muito crítico e subversivo quanto a qualquer norma. Neste contexto em que vivemos um poeta pode escrever somente sonetos como ele, ou haicais, ou poemas edulcorados no computador numa linguagem continuadora do concretismo, fazer música ou performances em saraus, pois não há limites. Assim, creio que, libertos da restrição de uso formal, resta a todos o desafio de pensar, de buscar conteúdo crítico e criativo originais, alcançando um estilo próprio, tal como em Glauco Mattoso podemos reconhecer ele em seu texto.



Se você fosse convocado para indicar três poetas brasileiros para o Prêmio Nobel, quais nomes escolheria?

- Não é, para mim, uma questão de resposta simples. Considerando que somente seria possível entre os vivos, o que torna árdua a tarefa, além do que esse poeta teria que ter uma obra considerável, assim como uma vida de combates, seguindo o padrão do Nobel, seria difícil encontrar quem indicar no atual contexto brasileiro. Pela importância da obra, o que mais me encorajaria a sugerir é Augusto de Campos, que além de ser um experimentador com a linguagem é um desbravador tradutório, fazendo o esforço de ler o outro, não se restringindo à sua própria expressão, sendo sempre um combatente por ideias, por debater o obscurantismo no país com o resgate de escritores como Pagu, Sousândrade, Oswald de Andrade etc e por colocar a poesia do Brasil no mapa mundi. Acho Silviano Santiago um escritor importante, considerando a relevância de sua obra, experimental, sem ceder ao mercado, além do seu trabalho inestimável à cultura do país, como crítico e estudioso da literatura nacional. Dalton Trevisan consolidou uma obra importante, porém não tem o perfil de militante por causas sociais como exige o Nobel. Poderíamos pensar também em Ferreira Gullar, que tem um histórico de luta contra a ditadura, tem uma obra com ótimos momentos estéticos e belos poemas, porém ele nesta sua última fase é de senilidade retrógrada, de vociferação raivosa com que se expressa no jornal, cegado por uma frustração histórica com o comunismo de que foi militante um dia, e agora parece repetir Stalin fantasiosamente desejando uma Sibéria para todos que estão no poder, esquecendo-se que há um ambiente de luta, de disputa de interesses terríveis, especialmente econômicos, num espaço democrático conquistado a duras penas e sujeito a pressões de grupos de interesse financeiros mundiais e locais que não estão nenhum pouco interessados em resolver o problema da miséria deste país e do analfabetismo de 75% da população, entre tantos descalabros. Sendo assim, fora esses três que eu cogitaria sugerir para iniciar um debate – não propriamente indicar para o prêmio - os outros poetas vivos em atuação no auge da idade e da obra feita ou em andamento, destrambelham-se para a irrelevância, como esses que estão almofadados na Academia Brasileira de Letras. Daí que se pode constatar que se um brasileiro viesse a ganhar o Nobel de literatura, não seria propriamente entre os poetas... Por isso creio que o escritor mais subversivo hoje, ainda que não propriamente literário, indo contra os governos, contra o modelo econômico vigente no país há décadas, contra Belo Monte portanto e a favor dos índios e da rica natureza que é dizimada sem que se a conheça e estude adequadamente, essa pessoa é Eduardo Viveiros de Castro.


Conte um pouco da história do livro “101 poetas paranaenses”. Há um ano que o livro foi lançado, se a obra fosse lançada hoje mudaria alguma coisa? Nomes? Organização? Os parâmetros escolhidos para esse livro seriam os mesmos?

- Fui convidado a fazer uma pequena antologia com os poetas mais expressivos do Paraná, num espaço curto de tempo. Isso não me motivou, nos daria mais do mesmo, por isso preferi arriscar e fiz uma pesquisa de leitura, um esforço enorme de leitura e de escolhas e cheguei a esse resultado; quando concluí, pelo tamanho, duvidei que a Biblioteca publicasse, mas deu certo. Ficaram de fora alguns autores que eu gostaria de ter incluído mas não pude por falta de autorização, por intrigas familiares, por divergências ideológicas. Não creio que mudasse muita coisa, pois o tempo que passou é muito pouco. Sei que há muitos, inumeráveis pessoas escrevendo, tenho tentado ficar atento, mas é impossível acompanhar, é preciso tempo para que a poeira das vaidades caia ao chão, para que as obras e vidas se imponham pela qualidade. Claro, arrisquei em muitas escolhas, especialmente jovens que poderão desaparecer antes que concretizem uma obra importante para além do que recortei, porém o fiz com parâmetros claros de crítica e por isso não mudaria nada hoje, uma vez que o número escolhido pelos editores, ao fim, foi 101. Lamento que na edição não tenha sido possível incluir as biobibliografias que fiz e que embasaram as escolhas, dando pistas da importância que enxerguei em cada um. No entanto essa é apenas uma antologia, outras devem ser feitas. Se houve quem ficou insatisfeito, é um ótimo motivo para fazer outro recorte que se interponha ao que fiz. Seria didático. Os grupos devem fazer as suas, as revistas já fazem um trabalho de seleção, são formas de antologia. Li umas reclamações por aí nas redes quanto aos critérios, quanto a gente que tenha ficado de fora, porém não vi mais que um comentário pertinente até agora, não vi leituras consistentes sobre a antologia, a não ser uma publicada pelo Ricardo Pedrosa Alves na revista Subtrópicos. Além disso, por ser uma antologia os recortes se impõem, não é possível colocar todos, seria como repetir aquele conto do Borges cujo personagem reescreve tal e qual o Quixote e outro refaz o mundo em um mapa... Finalizando, lembraria outra assertiva de Gilles Deleuze, para quem, "... entre todos os que fazem livros com intenções literárias, mesmo entre os loucos, são muito poucos os que podem dizer-se escritores” – não me excluo da dúvida, para mim sempre vitalizante, pois a escrita, a literatura, é um processo, não algo acabado e que é excessivamente obscurecida pelas vaidades. O problema todo é que no Paraná, até mesmo no Brasil, se fazem raras antologias de caráter crítico. Quanto à Passagens, que fiz em 2002, está valendo ainda como um eficiente registro daquela geração lá focada, e do momento histórico, pois os poetas escolhidos continuam escrevendo, à exceção de uns 3 quem nem figuraram na 101 e muitos já podem obscurecer o comentário negativo feito por Wilson Martins, ao qual respondi na 101. As propostas, os recortes, de ambas são muito diferentes.


Ademir, fale um pouco de você, dos caminhos literários que escolheu. Quando começou a escrever? Fale de seus mestres, de seus admiradores e de seus detratores. Fale um pouco de sua obra.

-Nasci em Maringá, em uma família simples, de pais trabalhadores com apenas os anos iniciais de escola. Me formei e me doutorei em Letras, participei dos movimentos políticos pela redemocratização do país nos anos 80/90, de movimentos culturais e defini a literatura como um campo de atuação interessante. Tenho publicado revistas como a Babel, de poesia, que obteve grande reconhecimento ao ganhar o primeiro lugar entre 170 projetos num edital do Ministério da Cultura em 2010, tenho atuado à margem do mercado com edições de circulação dirigida e publicado vários livros. Comecei a escrever lá pelos 15 anos e com 18 publiquei meu primeiro livreto. O mais importante teve 20 anos de amadurecimento na gaveta, saiu em 2007, Os mortos na sala de jantar. Em 2012 publiquei Pirão de Sereia, com minha poesia reunida de 30 anos. Alguns livros foram traduzidos e publicados no Peru e no Paraguai. Nos próximos dias lanço Siri na Lata, com uma reunião de crônicas publicadas em jornal durante sete anos. Mestres, eu diria que são a minha biblioteca com uns 7 mil volumes, que se altera com o tempo. Porém gosto muito de Oswald de Andrade, Campos de Carvalho, Dalton Trevisan, Jamil Snege, Jorge Luis Borges, Pirandello, Dostoievski, Tchekov, Manoel Carlos Karam, muitos húngaros e sicilianos... uma lista enorme. Não saberia falar sobre admiradores. Detratores? Não me lembro de nenhum.


Quais são os plano para o futuro. Qual é o seu sonho como poeta?

- Espero voltar a publicar a Babel, revista de poesia, no ano que vem. Nos planos, publicar alguns livros que estão na gaveta, dois de contos, um de crítica poética, outro de ensaística literária, mais uns dois de poemas. Sonho? Que este país não tenha mais analfabetos e sim leitores.

Comentários