Mayra Correa e Castro: Morrer e Viver – Sobre o Centenário de A Metamorfose, de Kafka

Quando se pensa em formas de morrer, há quem não suporte desastres de avião, porque são repentinos, brutais e não se tem chance de dizer adeus. Muitos temem fenecer depois de longa doença, porque nada como ela para comprometer a dignidade humana. Alguns comentam que gostariam de morrer dormindo, tranquilamente, ao que são refutados por opiniões de que isso também seria súbito. Então que, exemplo vai, exemplo vem, parece difícil encontrar melhor modo de morrer. De toda forma, mesmo aqueles que temem acordar mortos, vão para a cama e dormem sem maiores aflições.

Até que Kafka publicou A Metamorfose.

Era 1915, e este texto saiu numa revista literária em Leipzig. A história modificou o panorama da literatura moderna e influenciou grandes escritores. Em vida, Franz Kafka, um tcheco judeu que escrevia em alemão, publicou pouco – A Metamorfose incluída. Mas foi a partir de uma abertura de 20 palavras, entre as mais famosas de contos, que ele se tornou um gênio:

“Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheuren Ungeziefer verwandelt.”

A Metamorfose é contada como a história de um caixeiro-viajante que acorda transformado em monstruoso inseto. Ou em monstruosa barata. Ou em monstruoso verme. Não se sabe. Fica à interpretação do tradutor. Mas fica às expensas do leitor, sobretudo aqueles que são sugestionáveis, perceber que um novo destino se soma à ordinária vida humana: dormir e acordar inseto. Muitos diriam que é pior que morrer:

É súbito. É como uma longa doença. E é contrário à dignidade humana. Nem há nenhum milagre que compense: também acaba em morte.

Ou, antes, o milagre seja a morte, pois quando Gregor Samsa se vê preso à existência no próprio quarto, alimentado com pratos passados pelo viés da porta, apartado da convivência familiar, mas ainda consciente de quem é – embora não compreendesse porque estava naquele corpo -, a torcida é para que ele desapareça logo – e de qualquer forma.

Rapidamente, e esta é apenas uma das facetas geniais deste conto, o leitor compreende que o destino de Samsa é imutável. Uma vez barata, sempre barata. (Ok, inseto.) O leitor também quer que tudo aquilo acabe, e se torna tão indiferente à vida de Samsa como a família do personagem. O que se impõe na narrativa é resolver o cotidiano, sobretudo a perda de recursos financeiros quando o principal provedor não pode mais exercer a profissão.

Outro reforço à indiferença é que Gregor acordou metamorfoseado porque acordou assim. A única pista foram sonhos intranquilos. Não existe uma trajetória antes. Nenhum elemento motivador. Nada. Se lhe fossem investigar a causa mortis, nenhuma artéria entupida provocando infarto, nenhuma bactéria provocando infecção generalizada, nenhum câncer corroendo as entranhas. Teria sido uma morte do tipo “porque sua hora chegou”. Ele merecia isto? A família merecia isto? Nenhuma destas perguntas ronda o texto.

Não se trata de um conto redentor. Samsa não é herói. Ele nem mesmo fica comovido com sua transformação. A primeira preocupação quando observa seu ventre de verme (ok, inseto), deitado de costas na cama, é como se levantar. Não toma susto. Kafka era judeu. Viveu em Praga quase a vida toda. Mas neste ponto resolveu dar uma personalidade bastante inglesa a Samsa: pragmaticamente, a primeira pergunta que ele se faz é “o que aconteceu comigo? ”. Sangue-frio. Coisa de inglês. Coisa de inseto.

A indiferença é uma obsessão kafkiana. Assim como a solidão, o aniquilamento das esperanças. Também o são o relacionamento conflituoso com o pai e a sensação de não pertencimento. A opinião alheia, legitimadora, outra obsessão de Kafka. Finalmente, algo um tanto romântico, fosse Kafka escritor de fábulas infantis e não de temática tão angustiante, a construção de estórias em que papéis são trocados, quase como se o carma, este conceito filosófico de que se recebe de volta aquilo que se dá, se encarregasse de reparar injustiças. No caso de A Metamorfose, estando Samsa impedido de trabalhar, volta o pai a ter que sustentar a família. Mas ao final do conto já se acena o revés: casando-se Greta, a filha caçula, poderá novamente o pai ser sustentado.

A monstruosidade, neste conto, não é Samsa ter se transformado num inseto. Nem morrer. Faz 100 anos que dormir, acordar e continuar lutando contra a existência é que se tornou monstruoso.

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José Castello, escritor, crítico literário e jornalista brasileiro, citou, frase de Kafka, que “escrever é um sono mais profundo do que a morte” (Jornal O Globo, 18/09/12). A citação mais conhecida, porém, é “tudo o que não é literatura me aborrece! ” Sempre imagino como deve ter sido difícil, para Kafka, escrever: ele se jogava a cada vez para a morte, e nada mais que a morte o satisfaria. Morreu cedo, tinha tuberculose, mas muitos nesta época, senão pela guerra, senão pela tuberculose, morreram. Em 1918, na verdade, todo um mundo morreria, e se no mundo em que viveu, Kafka não tenha passado de nada mais que um advogado contratado numa firma de seguros, no mundo que estava por nascer depois da I Guerra Mundial ele seria um dos maiores escritores do século.

Escritores assumidamente angustiados com a influência de Kafka foram Garcia Marquez, Sartre, Borges, Camus, Beckett, Ionesco, Coetzee e Saramago. Entre brasileiros, assumidamente José Castello, que não apenas publicou crônicas inspiradas no escritor como Ribamar (2010), que ganhou o Prêmio Jabuti de Romance do Ano de 2011, e teve como ponto de partida Carta ao Pai, que apareceu em 1953, e revela a torturante relação de Kafka filho com Kafka pai.

Buscando por outros títulos importantes que tenham sido publicados com inspiração na sua obra, me deparo com O Copista de Kafka (2007), de Wilson Bueno, escritor paranaense. O livro ganhou prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria contos, mas eu não o conhecia. São mistérios kafkianos os que me levam escrever este texto citando jeitos de morrer. Wilson foi encontrado morto em casa, em 2010, apunhalado com arma branca. Um jeito que não mencionei no início, mas figura entre os mais vis: assassinato.

O Google me devolve outros links, como duas peças de teatros que estrearam em junho deste ano.
Pudera, 2015 é ano de homenagens ao centenário da publicação de A
Metamorfose. Estranho é se não houvesse nenhuma comemoração.

Mas todo livro que se inspira em Kafka corre o risco de ganhar o adjetivo de sub-produto, como li numa resenha no jornal Rascunho em Março de 2011. Depois de 100 anos, a pergunta óbvia seria: por que mais um? Na música, acordes e melodias e letras dão origem umas às outras e ninguém reclama que surja mais uma cantora inspirada em Elis, mais uma música inspirada em Chico, mais um arranjo inspirado em Jobim. Pelo contrário, Elis, Chico e Jobim como influências já passam credibilidade: sabemos que o artista ouviu coisa muito boa na vida.

Costumamos ver com desdém, no entanto, influências literárias. Por que mais um livro inspirado em Kafka? Como aprendemos em A Metamorfose, a pergunta está errada. Não interessa por quê. Nenhum escritor que se dedica a recontar Kafka quer suplantá-lo, quer explicá-lo mais do que já foi explicado.

Se há alguma razão para fazê-lo, quase arrisco dizer, possivelmente foram sonhos intranquilos. Como refletiu Castello na crônica citada, “nas piores horas, só as palavras salvam”.

O escritor Carlyle Popp na foto de Neni Glock
Então, em ano de comemorações, uma homenagem particular foi realizada com a coletânea Kafka, uma Metamorfose Inspiradora (2015). Organizada pelo advogado e escritor Carlyle Popp, conta com 26 textos de escritores veteranos, iniciantes e professores que conduzem, a sua maneira, a experiências transformadoras. Entre os autores participantes da coletânea, estão Castello, Antonio Carlos Viana, Antônio Torres e João Anzanello Carrascoza.

Já participei de oficina com todos, e todos mencionaram Kafka. Antonio Carlos Viana traz o tema de um menino morto que fica abandonado no quarto. O irmão quer socorrê-lo, mas ninguém na família parece atinar para o fato. Da mesma forma que, em algum momento, podemos explicar A Metamorfose como um grande delírio – Samsa nunca, de fato, se transformou em inseto algum -, o garoto que perde o irmão também apenas imagina, já que a realidade do cotidiano, como ir à escola e ajudar a mãe na cozinha, é tão impositiva.

Carrascoza, como outros autores da coletânea, brinca com o próprio texto original, pensando numa competição entre a noite que transformou Samsa e o próprio Samsa.

Brincar também é o que faz o escritor de ficção-científica José Tucón, trazendo Sherlock Holmes e Dr. John Watson para destrinchar o mistério do desaparecimento do cadáver do inseto. Talvez nem supuséssemos haver mistério aí, mas Tucón nos faz acreditar que, sim, as pistas indicam outras versões elementares dos fatos.

Mistério é uma das nuances no conto de Luis Henrique Pellanda, a história do filho único entre sete irmãs, que começa definhar no quarto quando se vê preso ao destino que o quer arrimo de família, como substituto para a ausência do pai.

A relação com o pai volta no conto de Carlyle, que narra o sumiço do filho que se sente envergonhado por chorar no funeral paterno. E a coletânea volta ao tema morte com André Viana falando de uma mãe que perde os filhos em dilúvio no Sergipe, e com Isabel Furini, que cria uma velha onde “pulsa coração mas sem entendimento”, parada na leitura de A Metamorfose, página 33.

A literatura é sono mais profundo que a morte e bem menos aborrecida.

Quando um escritor, consagrado ou novato, se debruça em cima de um ídolo, pode chegar à conclusão de Otto Leopoldo Winck, no conto Dia de Kafka: “E qual é a vantagem de me tornar Kafka se não posso produzir nada original? ”

A pergunta é retórica na vida real: nunca nos transformaremos em Kafka. Mas, se há leitores mais sugestionáveis, eles talvez gostem de imaginar que isso possa acontecer. E, se acontecesse, realmente não faço a menor ideia se seria melhor ou pior que morrer. Certamente, seria um jeito surpreendente de viver.
Mayra Correa e Castro


Mayra Correa e Castro
é aromatóloga e linguista. É empresária em Curitiba, participa de dois grupos de escrita literária, media um círculo de leituras entre mulheres e possui três contos publicados em coletâneas. Mantém o blog de resenhas As melhores partes dos livros que li e o site casamay.com.br.


O livro Kafka - uma metamorfose inspiradora, organizador por Carlyle Popp, está a venda na Juruá Editora.

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