Edson Valente: Poemas

ROUPA DE CAMA

Lembranças tecendo o tempo esse manto
Que sufoca os que não aprenderam a
violar infinitos –
estampas de rostos que se perdem
em dimensão e na dura
tensão entre
o que não basta e o silêncio –
há de se cobrir com retalhos de ilusão
o descaso das noites mais frias
e no verso de um lençol ainda branco, posto que
exaustivamente esgarçado
acobertar o choro das
despedidas

Tela da artista plástica Ivani Silva


DEPOIS

O apego veste
Calças de barra feita
Luvas que moldam o aperto
De uma salva cortante de palmas e orações
As camisas de linho com as mesmas iniciais da pedra
Sapatos ouvidores de quem não passa
O apego,
Olhos e tímpanos atentos
Muito mais que antes
Aos acenos que preconizavam a explosão do sol
(tal qual esse sentimento)
– ah se soubesse, o canto
De tantas notas,
O afago
De um pano que cai –
Bateu uma porta, ruidosa
Ninguém sai à francesa quando se vai
Então nada mais cobre direito
Chinelos, malhas, gravatas, botões, mangas, golas,
Bravatas
Tristes sinais

Todos agora sem uso
Todos agora sinceros demais
As vestes servirão a outros
O apego, jamais




ESCORA

Quadro de Ivani Silva
Preencher teu útero de substância ultrajante
Sem a viscosidade das cismas
E de inférteis decisões –
Foi assim que surgi:
De um arrombamento
Flor plantada ao acaso

Alimentada à revelia do intento
Sem presentes dourados
Interferência na película do medo
O diabo num domingo a passeio –
Sobrevivência de respiradouro
E queres mesmo continuar com a farsa?
Cadê teu senso
Ausência indolor no fogo
Das menores faces do mundo
E escancara as mandíbulas de teu veio
Abraçando-me com a fúria das pernas –
Que sejam teus os genes
A manter de pé o miasma
Abatendo no fosso a cabeça do velho fantasma
Guardado o fruto ao largo do ímpeto da aldeia –
Enfim me vem o cansaço, quero dormir agora
Encerrado na pele do continuísmo
A acordar em dia vindouro com o horror de meus olhos
Em outra cara

Edson Valente




Autor dos livros Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Patua, 2014) e dos livros de contos Raiz Forte (Patuá, 2016) e Refluxos (Ateliê Editorial, 2010),  Edson Valente é jornalista. Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov e Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons e The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.




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