Bárbara Lia: Quando eu quis atravessar as grandes águas - e outros poemas


Giz rendado

O que a onda diz
ao cão sentado
babando moluscos
e saudades?
Como rasgar a onda
sem cicatrizar em azul?
Beber a ardência seminal
de amantes afogados
como quem engole
segredos guardados
entre debruns
de ondas
em seu giz rendado

Bárbara Lia


in Tem um pássaro cantando dentro de mim
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Tela de Carlos Zemek


Quando eu quis atravessar as grandes águas

Quando eu quis atravessar as grandes águas
O silêncio lá no alto bombeava fúria nas veias
Os trovões mais abaixo eram canção de ninar

Quando eu quis atravessar as grandes águas
Equilibrei-me em pontes carentes, sem cair
Nos petrificados solos ruía inteira, sangrava

Lembro que não havia anjos ou demônios
Nada que li e reli nos livros antigos e sebosos
Só solidão e flores azuis a embalsamar o ar

Sim, atravessei as grandes águas sem rezar
Três pétalas de ternura coladas ao corpo nu
Sonho (oráculo) em preto e branco com o pai
Cheiro inconfundível de tangerina nas narinas

Depois da travessia - olhos veem além da pele -
Nem é tão bom ver dentro o mundo e pessoas
Não sei se era mais feliz antes da viagem rara
Ela altera o rosto da felicidade e só me resta:


Esta casa vazia cheirando à poesia, a mala fria
Com mil tangos de adeus, acenos nas estações,
Beijos fotografados pela lua, e mil lágrimas...
Todas que o sol secou como se fosse seu ofício
Alguns patéticos bilhetes pálidos e sem nexo
Repúdio dos que não suportaram o peso:
Ser amado por quem venceu as grandes águas

Bárbara Lia




                                                          agora finalmente estou renunciando ao pacto
                                                          rasgo o contrato
                                                        devolvo a fita
                                                        Hilda Machado

                                                                                É crua a vida. Alça de tripa e metal.
                                                                                Nela despenco: pedra mórula ferida. 
                                                                                Hilda Hilst


Se eu me chamasse Hilda seria poeta irônica
Evocaria antigos deuses - júbilo amorável
Desfaria contratos usando a Poesia e diria
Nuvem de organdi – metáfora acariciante
Se eu fosse Hilda deixaria a casa nas manhãs
Adentraria a floresta das palavras
Voltaria com o almoço, o jantar e a sobremesa
Viveria do verbo, devoraria nas noites:
Megatério & Ilharga
Trufas & Mimesis
Floema & Mórula
Minha alma jamais teria fome
Escreveria como quem habita outro mundo
O mundo das rainhas com senso de humor
Viveria tal qual agora - sem amor -
Mas, com um vendaval de mistérios
Costurados na saia de poeta
Não sou Hilda Machado ou Hilst
Sou bárbara poeta que teima
Em cantar o feminino com cuidado
Para que todos entendam da palavra – Mulher –
O significado

Bárbara Lia




Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Publicou dez livros, entre eles: O sorriso de Leonardo (Kafka edições baratas), O sal das rosas (Lumme), A última chuva (ME), Constelação de Ossos (Vidráguas), Paraísos de Pedra (Penalux), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR) e Respirar (Ed. do autor). Integra várias Antologias, entre elas: O que é Poesia? (Confraria do Vento / Cáliban), O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar -  Verbo Atemporal (Rocco), Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo).

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