Maria da Glória Colucci: Ética familiar e o Afeto Respeitoso Como Fundamento do Direito à Convivência Familiar

ÉTICA FAMILIAR E O AFETO RESPEITOSO COMO FUNDAMENTO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Maria da Glória Colucci

1 INTRODUÇÃO

Cada grupo social reflete em sua vivência os valores que se formaram ao longo de sua existência, padrões eleitos como os mais relevantes e desejáveis pela complexa rede de relações construídas no seu interior. Contribuem, desta forma, os valores para manter a unidade social, indispensável à sua continuidade e evolução, fortalecendo os vínculos entre os seus membros e impedindo a sua desintegração.ii

Revelam-se os valores de múltiplas formas, mas a mais evidente é nos usos e costumes, observados pelo grupo espontaneamente, sem que se possa identificar sua origem; uma vez que surgem à sombra de práticas desconhecidas, mas que adquiriram com o passar do tempo importância como autênticas marcas da comunidade que os ostenta.

Fotografia de Isabel Furini

A cultura das sociedades retrata, dentre os valores, ao lado da liberdade, igualdade, sinceridade, verdade, dignidade etc, o respeito e o afeto como fundamentais ao estabelecimento ou à manutenção dos vínculos familiares.

À sedimentação dos valores do grupo, sua internalização e acolhimento, segue-se um crescente grau de socialização dos seus integrantes, propiciando a superação de muitos conflitos. Assim, os valores, ao se tornarem diretrizes de comportamento no trato social, moral ou jurídico, conferem mais harmonia e equilíbrio à vida do grupo:

Os indivíduos se orientam em suas ações de acordo com uma escala de valores, de tal forma que se pode afirmar que a realidade social é constituída por ações humanas orientadas por determinados valores. Os valores têm diferentes graus de importância social; entre os mais comuns estão: o heroísmo, o patriotismo, a justiça, a honra pessoal, a honestidade.iii

Em especial, deve-se enfatizar que a tônica das relações interpessoais no ambiente familiar está no afeto que, como ressalta Sérgio Resende de Barros, significa em suas raízes latinas (ad+fectum), “feito(s) um para o outro” ou, como se diz comumente, “nascido (s) um para o outro.”iv
O afeto, como modelo axiológico, se traduz de múltiplas formas, tão rico é seu horizonte cultural: como admiração, amizade, veneração (respeito reverencial), amor maternal, filial, paternal, conjugal etc. Oferece, como todos os valores, polos positivos e negativos (desvalores), a exemplo dos acima citados, ou dos seus antinômicos, como o desprezo, ódio, rancor, ou mesmo sob a forma de paixão, que representa a exacerbação do amor ou do ódio.

2 O AFETO NA CONVIVÊNCIA FAMILIAR 

Dentre as funções mentais se encontram ao lado da cognição e volição, o afeto; cuja compreensão não é tão simples quanto a expressão aparentemente comum pode sugerir. Assim, os indivíduos são influenciáveis por pensamentos, sentimentos, lembranças, desejos, valores etc; de modo que tanto a cognição (relativa à intelecção, ao entendimento); quanto a volição (poder de escolha, autonomia de decisão) ou o afeto (ligação emocional, positiva ou negativa), são fortemente marcados pelos processos culturais de valoração familiar, social, religiosa, econômica, ou de outra ordem.
Assinala, Mariluze Ferreira de Andrade e Silva, reportando-se a Henrique Schützer Del Nero, ao analisar a vontade como mola propulsora da sociedade e seus reflexos nas relações humanas:

Del Nero (2002) afirma que a vontade é um dos pontos cruciais da mente humana porque sobre ela se edifica a sociedade uma vez que se supõe sermos livre para agir e escolher caminhos. [...] O ser humano é capaz de controlar ações de modo voluntário e de modo automático. O modo voluntário é lento, atento, consciente, ligado ao aprendizado e ao início da realização de uma tarefa. O automático é rápido e não se tem consciência de sua operação.v

Na construção dos afetos, a força das expectativas individuais dilui-se, mescla-se às do grupo, como se observa, com bastante clareza na convivência familiar. Embora não se possa ignorar outros ambientes, como o escolar e o religioso, fica evidente a força vinculativa dos modelos axiológicos (valores e desvalores) recebidos da família, quer seja, biparental ou monoparental.
Sérgio Resende de Barros procura delimitar a expressão afeto familiar, como:

[...] um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas - de vivência, convivência e sobrevivência -, quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam.vi

Destaca-se, no conceito acima, a “solidariedade íntima”, ao ver do autor precitado, como vínculo que une os integrantes de uma família, para além da simples base patrimonial comum. Na formação da família romana, a unidade do grupo estava na autoridade do pater familias, ao qual todos se submetiam. Seus poderes vitalícios, além da segurança alimentar, impunham total obediência aos membros do clã, vinculados por laços de sangue e patrimonialidade.vii

Com a alongar-se dos tempos, os vínculos sanguíneos e patrimoniais foram se atenuando, transferindo-se a base familiar para laços de afeto, cujo exemplo mais evidente se dá com os novos modelos de família, em que a adoção de filhos tornou-se comum e, socialmente, louvável (“filhos do coração”, como são chamados).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realidade social de um mundo em constantes conflitos gerou a exigência de novos vínculos familiares calcados no respeito e no afeto recíproco (solidariedade).

O reconhecimento do afeto respeitoso, que promove a união familiar e repudia toda sorte de violência e agressão física, mental ou psicológica, se reflete, claramente, na legislação recente do Brasil. Assim, a denominada “Lei da Palmada”viii, ou mesmo a “Lei Maria da Penha”ix ou “Lei da Alienação Parental”x são exemplos dos rumos indicativos que o Direito oferece à sociedade, os quais devem os novos modelos familiares observar.xi

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o registro civil pode conter, além da filiação socioafetiva, a filiação biológica da pessoa com todos os direitos dela decorrentes.

Diante do esboço realizado, verifica-se que as relações familiares são mais lastreadas no afeto recíproco, do que apenas na patrimonialidade e na autoridade irrestrita e inquestionável dos pais. O diálogo e a compreensão, aliados à solidariedade, podem fortalecer a sociedade familiar muito mais nos graves momentos de crise que a humanidade atravessa, do que os modelos tradicionais.

Maria da Glória Colucci




Maria da Glória Colucci: Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODM). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1º lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3º lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1º lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético.


2 DIAS, Reinaldo. Sociologia do direito: a abordagem do fenômeno jurídico como fato social. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.13.
3 Ib.
4 BARROS, Sérgio Resende. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.4, n.14, jul/set., 2002, p.7. 
5 SILVA, Mariluze Ferreira de Andrade e. Filosofia da mente: causalidade e a questão da vontade. São Paulo: Cadernos: Centro Universitário São Camilo, 1995, p.54.
6  BARROS, Sérgio Resende. Op.cit, p.9.
7 LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Introdução ao direito. Belo Horizonte: Del. Rey, 2009, p.27-28.
8 BRASIL, Lei 13.010 de 26 de junho de 2014, disponível em www.planalto.gov.br
9 BRASIL, Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, disponível em www.planalto.gov.br
10 BRASIL, Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010, disponível em www.planalto.gov.br
11Recurso Extraordinário 898260 Investigação de Paternidade disponível em www.stf.jus.br/portal

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