Maria da Glória Colucci: Direito à Imagem Corporal e Utilização não Autorizada de NUDES

DIREITO À IMAGEM CORPORAL E UTILIZAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE “NUDES”


Maria da Glória Colucci i

1 INTRODUÇÃO


A ênfase conferida à estética corporal, às linhas e formas perfeitas, sobretudo na mulher, tornou-se, com o alongar-se dos tempos, em forte instrumento de comércio. Inicialmente, apenas cortesãs expunham seus corpos, ainda que parcialmente, em locais abertos à visitação de homens e, mesmo assim, com certo sigilo; obtendo vantagens econômicas dos seus frequentadores. Condenadas por uma sociedade puritana, escondiam-se dos olhos das mulheres casadas e de suas filhas, para não sofrerem graves danos à sua integridade corporal ou mesmo serem presas. Procurava-se dar um “ar” de discrição à prática da prostituição, restrita, apenas, a locais permitidos (bordéis).

Com o advento da Internet, tornou-se lugar comum a exposição voluntária de corpos nus, de homens e mulheres, em sites que disponibilizam conteúdos interativos para adultos, com os mais diversos fins, propiciando diversão, prazer ou mesmo relacionamentos profissionais (acompanhantes). Os usuários enviam fotos íntimas optando por sua divulgação, concordando com as regras estabelecidas pelo canal de comunicação escolhido; acessando gratuitamente, ou mediante pagamento, os conteúdos existentes.

Nota-se no rápido esboço da evolução do desnudamento do corpo humano uma crescente tolerância e permissividade dos indivíduos em relação à exposição de sua imagem física, vendendo no comércio virtual o próprio corpo como mercadoria.

Há, na tradição jusromanista, a concepção de que o corpo é objeto de propriedade do seu titular, em vida, também podendo dispor sobre o mesmo post mortem, para fins de doação. No entanto, a doutrina dominante tende a não considerar, hoje, que o corpo humano possa ser objeto de “propriedade” do seu titular, ou seja, mercadoria, porque há aspectos intangíveis que o envolvem, correspondendo à dignidade corporal da pessoa; conforme Maria de Fátima Freire de Sá:

A doutrina diverge sobre a natureza jurídica do direito à integridade física do homem. Tradicionalmente, sustenta-se que constitui um direito de propriedade. [...]. Contudo, nos dias atuais, este posicionamento jusromanista não encontrará unânime acolhida. Invocando mesmo os romanistas, poder-se-á afirmar ser inaceitável tratar o corpo humano e a integridade física como direito de propriedade, já que, em sendo proprietário, o homem teria o amplo poder de disposição. Daí que a mutilação e a destruição do próprio corpo resultassem autorizadas.ii

A disponibilidade da imagem corporal por vontade própria é admitida, desde que não viole a lei, quando autorizada em desfiles de moda, nus fotográficos, revistas e sites diversos, filmes etc, limitada a exposição às faixas etárias e horários permitidos.


Quadro da artista plástica Ivani Silva


2 PRINCÍPIOS ÉTICOS NAS RELAÇÕES DIGITAIS 

O ponto de partida é, sem dúvida, a dignidade da pessoa humana, preceito constitucional do art. 1º, lll da vigente Constituição. Desta forma, exige-se de todo internauta que respeite, preserve e não invada os limites da liberdade de expressão e de acesso à informação, causando danos a outrem. Para tanto, o Texto Constitucional impõe a identificação do usuário do sistema ou de qualquer meio de comunicação ao dispor no art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”

Igualmente, é assegurada a inviolabilidade da intimidade da vida privada, além de fixar o art. 5º, X da Lei Maior que a honra e a imagem das pessoas sejam garantidas, culminando sua violação com a “indenização pelo dano material ou moral decorrente [...].”
Como bem analisa Guilherme Tomizawa, quanto aos limites técnicos da privacidade:

No tocante à internet, o ambiente público virtual não pode converter as relações privadas em públicas. Ou seja, a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem das pessoas continuam sendo de natureza privada, mesmo no ambiente da internet e, assim sendo, qualquer difusão indevida deve ser repudiada.iii

Ressalte-se que os valores fundamentais consagrados na Lei Maior exigem que se respeite e preserve a esfera da liberdade e privacidade alheias:

As especificações dos direitos e garantias expressos não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição e de novos direitos da personalidade que virão a ser detectados com a evolução do pensamento jurídico, em sua constante luta para manter sob controle o avanço das técnicas em razão das defesas e dos valores fundamentais da estrutura humana.iv

Os princípios éticos norteadores da comunicação, sobretudo digital, não são diferentes dos que devem direcionar as atividades de cada indivíduo nas suas relações interpessoais. Podem ser elencados, além dos já citados, a transparência, a boa-fé, a legalidade, a não-discriminação, e todos os demais princípios que se encontram presentes na Lei Maior e na legislação infra-constitucional.
A propósito da urgência na mudança de comportamentos nas relações interindividuais mediadas pelas novas tecnologias, Antonio Hohlfeldt pondera:    

A intensidade com que as tecnologias se colocam hoje na realidade cotidiana nos exige não apenas novos comportamentos em geral, mas também novas percepções, o que não se alcança de um momento para o outro.v 

O instrumento hábil à mudança de comportamentos na esfera digital, certamente, é a educação, a começar do ensino fundamental, com ênfase na cordialidade, no respeito e na legalidade e limites à liberdade de expressão. Quanto à percepção dos danos causados à vida individual e coletiva pelo mau uso dos meios digitais, ainda parece distante o tempo em que a sociedade vai reagir na medida certa a tais práticas atentatórias à dignidade da pessoa humana.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

No exposto, ficam claros os seguintes aspectos, pelo menos: a autonomia da vontade do titular do direito, preenchidos os requisitos formais quanto à capacidade, e o meio de informação utilizado, respeitadas a boa - fé e a dignidade da pessoa.

Neste percurso, o Projeto de Lei n. 5555/13 da Câmara dos Deputados tipifica como crime “[...] a divulgação de fotos e vídeos íntimos de cunho sexual pela internet ou por outros meios; passando, com a aprovação do Projeto, a ser uma nova forma de violência doméstica de familiar contra a mulher a exposição de cenas de nudez, ou ato sexual de caráter privado. A autorização expressa para a utilização da imagem é essencial à validade da divulgação, limitada ao (s) meio (s) autorizado (s), tais como vídeos, montagens ou fotocomposições, áudios etc.

Desta forma, o Projeto amplia o foco para “ofensa grave à dignidade ou decoro de outra pessoa”, posto que ao expor cena de nudez ou ato sexual de caráter privado não autorizado, fere não só a honradez, mas a fundamental confiança e lealdade que deve existir nas “relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade.”vi

Em particular, no caso das mulheres e meninas, a devastação causada, moral e emocionalmente, é muito grave, refletindo-se sobre a vida pessoal, familiar, profissional etc.
Já existe legislação anterior que criminaliza a invasão de dispositivo informático (como smartphones); apelidada de Lei Carolina Dieckmann, que teve fotos íntimas utilizadas por hackers e divulgadas na internet.vii

A diferença entre as duas leis – a que está em vigor (Lei n. 12.737, de 30 de novembro de 2012), e a que está em elaboração (Projeto de Lei nº 5555/13) – é que na primeira o infrator é alguém (qualquer pessoa), que invada “dispositivos alheios” e compartilhe, sem consentimento, fotos íntimas. Ao passo que, na segunda, a violação da confiança se torna mais grave, porque se dá em um contexto em que as relações domésticas de convivência, os laços afetivos etc, inspiravam lealdade recíproca; sendo praticada por familiar contra a mulher.

Em especial, no texto, deu-se ênfase à invasão da intimidade de mulher, por estranhos ou familiar, que divulguem imagens (nudes), sem autorização.

A vítima, porém, tanto pode ser homem ou mulher; embora seja mais comum o devassamento da intimidade corporal e sexual da mulher; despertando, neste caso, maior repúdio da sociedade, sobretudo, se adolescente ou jovem, pelos reflexos em sua vida futura.

O tema examinado neste texto dialoga com vários Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, sobretudo o ODS 5, qual seja, “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.”viii

Os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015 - 2030) representam, na atualidade, um itinerário de perspectivas socioeconômicas, ambientais e políticas para um mundo melhor, conforme compromisso firmado pela comunidade internacional, na denominada “Agenda Global. ”

Também, dentre os 17 ODS, deve-se destacar o 16, qual seja: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à Justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.”ix

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1 Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODM). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976 - 1ºlugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, (1977 – 3ºlugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1ºlugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético.



2 Sá, Maria de Fátima Freire. Biodireito e direito ao próprio corpo. Belo horizonte: Del Rey, 2022, p. 77.
3 TOMIZAWA, Guilherme. A invasão da privacidade através da internet: a dignidade humana como um direito fundamental. Curitiba. JM Livraria Jurídica, 2008, p.65.
4 PAESANI, Liliana Minardi. Direito e internet: liberdade de informação, privacidade e responsabilidade civil. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 35.
5 Hohlfeldt, Antonio. Comunicação, educação e cultura. Curitiba: Jornal Gazeta do Povo, 10 de novembro de 2008, p. 2.
6 Brasil. Projeto de Lei nº5555/13, Câmara dos Deputados; disponível em www.camara.gov.br
7 Brasil. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Disponível em www.planalto.gov.br
8 ONU. Organização das Nações Unidas. Agenda Global 2030, disponível em www.onu.org.br ou https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/
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