Isabel Furini: O Natal de Antônia


Éramos vizinhos. Morávamos no bairro Portão, em Curitiba. Ninguém tinha família por perto. Ocupávamos um predinho de três andares. Pintura amarela escancarada. No térreo e no primeiro andar, lojas, e no segundo andar, quitinetes de vinte metros quadrados enfileiradas ao longo do corredor externo, mal iluminado. Os moradores eram um espetáculo digno de menção, a começar pelo Zé Cervejinha, todo mundo o chamava assim, ninguém lembrava o seu verdadeiro nome. Zé Cervejinha ganhou esse apelido porque nunca ficava feliz com uma garrafa. E antes das 23 horas lá vinha ele, subindo as escadas vagarosamente, com os olhos apertados, a camisa desabotoada e um bafo insuportável. Atravessava o corredor cambaleando, mal conseguia colocar a chave na fechadura. Às vezes era auxiliado pelo Yoga (assim chamado porque era praticante). Ninguém lembrava o seu nome, para todos era Yoga. Sua quitinete cheirava a incenso. Só sabia falar de espiritualidade. Não era má pessoa, não. Sua irmã, Dalmira, que ocupava a quitinete úmida e escura do final do corredor, essa sim era mais perigosa do que cascavel. Uma língua afiada. Ela decidia. Ordenava. Controlava.

Na outra quitinete, Luciano, um moreno simpático que estava doente. A quitinete cheia de plantas era de Ramona, a velha setentona que havia se esquecido de morrer, como todos diziam. Sempre vestia blusas estampadas de cores berrantes e saias indianas para fingir alegria e descontração. Coitada! Nunca escutara um “eu te amo” na sua vida. Nunca fora esposa, nem mãe, nem sequer noiva. Os pais morreram e ela ficou sozinha, sem profissão, sem família, um eterno lamento. Ela dizia que a depressão não a abandonava, o problema real era que ela se sentia tão sozinha que não abandonava a depressão. Na quitinete contígua as duas lésbicas pareciam felizes. Eram muito prudentes, quase não falavam com ninguém.
               
Nas duas quitinetes maiores, dois vizinhos que não participaram da festa: a viúva – com seus cabelos que chegavam até a cintura e sua saia que nem deixava ver os tornozelos – enfatizou que não celebrava o Natal porque era festa pagã; e um advogado obeso e fracassado, que foi passar as festas no litoral.


E nesse Natal nos reunimos. Estávamos todos sozinhos, menos as lésbicas, é claro. Elas tinham muitas amigas para festar. Somou-se à trupe estranha a ruiva sardenta. Era muito alta e esquelética. Havia nascido em Matinhos, mas morava em São Paulo, comprou a quitinete para relaxar da cidade grande nos feriados. Tentava vender imagem de triunfadora. Enganou no princípio, mas em pouco tempo os vizinhos foram notando que a triunfadora que havia morado em Nova York e havia voltado ao Brasil buscando seu próprio lugar não era assim tão triunfante.  O cabelo vermelho fogo não dava para confundir com o natural. Tinha cara de ratinho assustado, e toda sua pose de mulher livre e soberana não conseguia esconder. Dizia ter dezenas de amigos, reconhecimento profissional e homens querendo casamento. Papo furado! Em um final de semana chegou com um rapaz um pouco mais jovem do que ela. Cara de safado. Ninguém gostou dele. Cheirava a trapaça. Só veio uma vez. Cansou-se rápido da tranquilidade do bairro. E a pobre ruiva voltou a ficar sozinha com seus sonhos.

E nesse Natal nos reunimos. Zé Pagodinho, Delmira, Yoga, a velha Ramona, Luciano, as lésbicas, a ruiva e eu. O Yoga ficou encarregado das compras, era um constante ir e voltar do mercado. No forno da Delmira, um leitão. A velha cozinhava um peru. A ruiva se dedicou a preparar saladas exóticas e arroz. As lésbicas fizeram várias sobremesas. Eu, que sou uma nulidade para a culinária, ajudei a descascar batatas e a cortar tomates.

Os homens colocaram as mesas, com toalhas muito brancas, enfileiradas no longo corredor e, entre uma cervejinha e outra, encheram os balões coloridos que foram pendurados no teto. A ruiva colocou uma árvore de Natal pequena, carregada de enfeites sobre um banco de madeira, no final do corredor. Por fim, tudo ficou preparado para a festa. Cada um trouxe sua cadeira e sentamo-nos, sorridentes, ao redor das mesas. Apesar do leitão bem dourado, do peru – com as asas torradas – das saladas com molhos desconhecidos, das cervejas, dos refrigerantes, das piadas, dos risos, cada um de nós cheirava a naftalina e a solidão. Era como se estivéssemos num barco à deriva. Água por todos os lados. Só céu e água. Marinheiros em um mar inacabável, parecia que seríamos engolidos pelas ondas das lembranças. Delmira alternava as críticas, ora criticava o primeiro marido, ora o segundo. Yoga pronunciava frases bonitas, Zé falava das festas no Rio de Janeiro e da ex-esposa que tinha um amante, a velha tinha o olhar sem vida, Luciano queixava-se de dor na coluna vertebral, a ruiva tentava manter a pose... com sua carinha de rato.
               
De repente os fogos de artifício preencheram o céu de cores. Todos nos levantamos das cadeiras, alguns ficaram apoiados na varanda. E eu olhei o céu e vi essa cascata vermelha, azul e laranja, linda. Lindíssima! Depois desci os olhos para olhar essa trupe vagabunda. A solidão dançava sobre nossas testas. Estávamos reunidos e cada um de nós estava sozinho, segurando-se nos destroços do barco – uma madeira, um pedaço de convés, um fragmento de armário, a perna de uma mesa. Tentávamos nos manter flutuando. O barco havia naufragado. Estávamos reunidos nesse Natal e éramos um grupo de náufragos arrastados pelas correntes do viver. O Natal já não mais renovava os sonhos. Havia perdido sua magia.

Isabel Furini é escritora e poeta.

Comentários

  1. Bom dia, Isabel Furini, seu conto me trouxe a nostalgia de muitos Natais, quando muitos, mesmos estando rodeados de pessoas sentem a amargura da solidão.
    Emocionante. Parabéns!

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