Maria da Glória Colucci: Direito ao sangue - Saúde e Cidadania Compartilhadas

DIREITO AO SANGUE: SAÚDE E CIDADANIA COMPARTILHADAS

Maria da Glória Colucci 1

1 INTRODUÇÃO

O profundo simbolismo contido no ato de doar sangue nem sempre é perceptível à sociedade e aos próprios receptores, beneficiados pela solidariedade de outrem.
Doar sangue é transferir para alguém parcela do bem-estar pessoal, saúde e tempo de vida, sem nada receber em troca, além do prazer de ser sensível e liberal em relação às necessidades alheias. Todo o bem que se pratica retorna em dobro, em paz e saúde.
O sofrimento é comum a todos os seres humanos e embora não possa ser mensurado, pode ser aliviado com o gesto de doar sangue, carinho e atenção aos que padecem dores, agonizam ou convalescem de uma enfermidade.
Devem ser tomados diversos cuidados, tanto no momento da doação, quanto da distribuição do sangue, em relação à qualidade, origem e preservação do material e hemoderivados; conforme a legislação em vigor estabelece, a saber, Lei nº. 10.972, de 2 de dezembro de 2004, que autorizou a criação da HEMOBRÁS – Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologiaii, bem como o Decreto n.5.402, de 28/03/2005.iii
Além dos procedimentos adotados quanto à qualidade do sangue, não se admite, do ponto de vista ético, e nem jurídico, sua comercialização conforme o art. 199§ 4º, da Constituição vigente.
Conflitos impensáveis, à primeira vista, surgem quando a ganância e a perversidade de alguns promovem a biopirataria de sangue humano; com fins meramente lucrativos ou supostamente beneméritos e científicos, como se examinará na sequência.

Arte Digital de Carlos Zemek
2 COMÉRCIO E ESPECULAÇÃO DO SANGUE E HEMODERIVADOS

Deve-se destacar, de início, que a Lei Maior ao vedar a comercialização de sangue humano, considera não apenas a possibilidade da transfusão; mas a pesquisa e tratamento de “substâncias humanas” em geral (art. 199 §4º), cujas condições e requisitos são regulados pela legislação infraconstitucional.iv
O significado ético que a saúde e a vida humana possuem transcendem a mera materialidade das referidas “substâncias humanas”, quando da remoção de órgãos, tecidos, transfusão ou transplante, para alçar a garantia constitucional da inviolabilidade da vida (art. 5º, caput).v
Nos idos de 2005, conforme relato de Vanessa Iacomini, índios brasileiros (Yanomani, Surui e Karitianos) tiveram seus sangues estocados nos Estados Unidos, a partir de doação voluntária, com promessas de tratamento de doenças como a malária, anemia e verminoses.vi
No entanto, a verdadeira intenção, aparentemente humanitária, ocultava interesses no comércio de fármacos obtidos com base nos dados coletados, sem serem revertidos em benefício das comunidades locais, ferindo seus valores e crenças ancestrais:

A comercialização foi denunciada pelo comércio de amostras de sangue de índios brasileiros por meio de rede mundial de computadores e suscitou um grande debate em torno das questões éticas e jurídicas que envolvem as pesquisas genéticas no cenário mundial.vii

O patrimônio genético de um país integra suas riquezas nacionais e sua utilização deve respeitar padrões éticos, não só pela sua natureza moral, mas pelos possíveis danos à sua economia e nacionalidade:

Nesse sentido, apesar da grande preocupação com os aspectos éticos e sociais dessas manipulações, a genética tem-se apresentado como um dos fatores mais relevantes para a compreensão da sociedade moderna [...]viii

Os mesmos doutrinadores elencam cinco motivos para a afirmação acima, dentre os quais podem ser destacados o terceiro e quarto:

[...] 3) a dependência da sociedade atual das manipulações genéticas, em face do mercado de consumo; 4) grande parte das doenças humanas pode ser identificada nos genes[...]ix
Por outro lado, o acesso irregular aos recursos genéticos de um país traz sérios prejuízos à sociedade, em especial à brasileira, porque lucros indevidos, obtidos pela “[...] biopirataria e a perda de oportunidade para compartilhamento dos benefícios decorrentes do acesso”, são incalculáveis.x
A “comercialização” não deve ser confundida com os custos do processamento, preservação e distribuição do sangue no País; visto que seu transporte e acondicionamento exigem procedimentos complexos; mas o “sangue’ em si mesmo, como “substância humana”, não pode ser vendido/comprado. Igualmente, os hemoderivados, subprodutos destes procedimentos, oferecem extenso leque de sustentação da vida e saúde dos cidadãos brasileiros.
Importante ressaltar que o direito ao sangue se inclui dentre os fundamentais, porque sangue é vida e saúde, apresentando-se como expressão inequívoca da cidadania; como prescreve o art. 5º, caput, da Lei Maior, além do art. 196 do mesmo Texto Constitucional. xi
Acrescente-se que a utilização do sangue de alguém para fins de pesquisa, ou qualquer sorte de manipulação, significa invasão de sua intimidade corporal e de seus dados pessoais (DNA), se não houver expressa autorização neste sentido.
Lembre-se, igualmente, do que dispõe a recente Resolução n.466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que fixa critérios éticos para o trato da pesquisa em seres humanos; pela qual sempre é necessário respeitar a autonomia da vontade do paciente, além de promover o bem-estar individual e coletivo.xii

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidadania em seu amplo exercício, desde as mais próximas concepções teóricas, que se firmaram em torno da dignidade da pessoa, transcendem o mero acesso aos direitos políticos, universal e igualitariamente, para contemplar a plenitude de todos os direitos por todos os indivíduos de um Estado; com as ressalvas legais.
Portanto, o direito ao sangue compõe o elenco dos direitos e princípios fundamentais, consoante o art. 1º, II da vigente Constituição, como emanação da cidadania.
Quanto à comercialização, destaque-se que não se trata de princípio ou mesmo regra universal a sua proibição, porque o plasma sanguíneo pode ser vendido/comprado, conforme ocorre nos Estados Unidos,xiii sem restrições, respeitada a autonomia do doador.
Os avanços tecnológicos no campo das biociências têm se revelado promissor; no entanto, cautelas precisam ser adotadas em virtude dos crescentes apelos comerciais e das questões éticas que envolvem o direito ao próprio corpo.

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1. Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODS). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1º lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3º lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1º lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético. Troféu Imprensa Brasil 2017 e Top of Mind Quality Gold 2017.


2 BRASIL. Lei n.10972, de 2 de dezembro de 2004, que cria a HEMOBRÁS – Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, disponível em www.planalto.gov.br

3. BRASIL. Decreto n. 5.402, de 28 de março de 2005 que cria a HEMOBRÁS – Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia disponível em www.planalto.gov.br

4. BRASIL. Constituição da República Federativa do. 1988. Disponível em www.planalto.gov.br

5. BRASIL. Constituição da República Federativa do. 1988. Disponível em www.planalto.gov.br

6. IACOMINI, Vanessa. Biodireito e o combate à biopirataria. Curitiba, Juruá, 2009, p.136.

7. Ib.

8. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Biodiversidade, patrimônio genético e biotecnologia no Direito Ambiental. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Adriana Diaféria. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.94.

9. Ib.

10. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Op.cit,. p.89.

11. BRASIL. Constituição da República Federativa do. 1988. Disponível em www.planalto.gov.br.sp;

12. BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.466, de 12 de dezembro de 2102. Disponível em www.bvsms.saude.gov.br

13. IACOMINI, Vanessa. Biodireito e o combate à biopirataria. Curitiba, Juruá, 2009, p.99.


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