Maria da Glória Colucci: Influência Midiática na Percepção Social da Violência Doméstica no Brasil

INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NA PERCEPÇÃO SOCIAL 
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL

Maria da Glória Colucci1


1 INTRODUÇÃO

Os meios de comunicação ao cumprirem o papel de informar a sociedade nem sempre se apercebem da forte influência sobre a forma de pensar e agir das pessoas diante dos conflitos.
Em razão do contínuo fluxo de informações, os dilemas existenciais se intensificam no cotidiano das famílias, motivadas pelas contradições vivenciadas nos ambientes domésticos, causadas pelo desemprego, estresse, doenças, separações etc. Explodem em forma de violência contra os mais vulneráveis, sobretudo, crianças, idosos e mulheres. Em sua forma mais perversa se caracteriza como violência física em situações extremas, chegando à causação de lesões graves e homicídios.
Embora a prática da violência intrafamiliar sempre tenha existido, a sociedade, o legislador e as autoridades públicas têm dado maior atenção aos frequentes casos de violência doméstica; devido à visibilidade que a mídia propicia, despertando o repúdio da sociedade para os antigos costumes violentos do ambiente familiar; como o estupro, o abandono de incapaz, o infanticídio e o incesto.
Refletindo a violência familiar na escola e nos esportes, constata-se um recrudescimento dos ataques verbais (xingamentos), físicos (chutes e até lesões graves e mortes) e morais (bullying), sem que ainda se tenha encontrado uma forma de conciliar a latente agressividade do ser humano com o bom convívio na adolescência e juventude.
Causando espanto, verifica-se até mesmo entre adultos evidências de descontrole como pais, mediante agressões aos filhos, desde palmadas, vedadas por lei, até surras prolongadas com varas, chicotes, e outros instrumentos perfurocortantes.
Quanto ao papel educativo da escola é apenas (ou deve ser) uma desconstrução das formas violentas de trato dos problemas pela família, porque as marcas físicas e os traumas emocionais experimentados pelos alunos estão enraizados nas relações familiares disfuncionais.
A Constituição de 1988 fixa como princípio, expressamente, sob a epígrafe “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso” que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226). Embora tenha sido lenta a evolução humana neste sentido, a tutela jurídica é essencial à continuidade da família.II

Quadro de Claudia Agustí
2 DESENVOLVIMENTO CULTURAL HUMANO E COMUNICAÇÃO

O desenvolvimento social atravessou fases prolongadas, em que o homem superou a sua condição de ser dominado pelos instintos até se tornar capaz de produzir bens para sua utilidade; comunicar-se mediante uma linguagem articulada e atribuir aos sons sentidos capazes de traduzir seus sentimentos, vontades e interesses.
Ao conviver em grupo precisou respeitar certos padrões de conduta, envolvendo os mais próximos e observando as hierarquias, preservando a sobrevivência e a continuidade da espécie, sob as mais diferentes formas associativas:
     Em todas as sociedades humanas encontra-se uma forma qualquer de família. Sua posição, dentro do sistema mais amplo de parentesco, pode oscilar muito, desde um lugar central e dominante (sociedade ocidental) até uma situação de reduzida importância (povos ágrafos), que dão maior destaque ao grupo de parentesco, mais amplo do que a unidade representada por marido, mulher e filhos.III
     A verdade é que a necessidade humana de viver em grupo é muito mais uma condição biopsíquica; do que uma escolha consciente. Assim, a segurança, o bem-estar e a complementariedade dos atributos individuais exigem que cada um participe do grupo conforme suas habilidades para, igualmente, receber do grupo o que precisa.
O isolacionismo de alguns reflete, na mais das vezes, um desvio do padrão humano gregário, por opção ou por inadaptação à ordem social estabelecida. Ao rebelar-se contra as regras, ainda que mínimas, da convivência familiar ou social, o indivíduo provoca desarmonia no ambiente, gerando reações violentas dos outros membros do grupo, dependendo do grau e hierarquia dos desafiados (pais, professores, empregadores, autoridades, líderes religiosos etc).
A reação violenta é resultado do retorno inconsciente às práticas instintivas, em que os freios desaparecem e as respostas brutais assumem o comando do conflito, mediante agressões físicas, rompendo os modelos éticos adotados pelo grupo (valores, crenças, regras e tradições religiosas).
Neste contexto, o Direito procura, mediante modelos de conduta, adredemente fixados, prescrever quais atos são considerados lesivos (ilícitos) e quais são recepcionados pelo grupo (família, escola, sociedade) como lícitos (permitidos/ obrigatórios). A linguagem se constituiu no principal veículo de comunicação dos padrões (costumes) adotados pelos grupos.
Embora séculos nos separem da invenção da imprensa (Gutemberg, 1430), a comunicação de ideias, imagens, sentimentos etc promoveu ao redor do mundo revoluções, quedas de impérios, rupturas e graves crises econômicas e, ainda hoje, prossegue o seu fluxo de informações, mais falsas (fake news) do que verdadeiras.IV
 O Humanismo, que precedeu o movimento renascentista, deu “asas” ao pensamento humano da modernidade (XIV – XVI), lançando as bases do racionalismo cartesiano (França, XVII – XVIII), a partir de quando a razão laica, universal e neutra se propôs construir a Verdadeira Ciência.v
A Ciência da Comunicação desempenha, hoje, forte papel formador das convicções, crenças, ideologias etc, disseminando pelos mais diferentes instrumentos impressos, digitais, musicais, literários, folclóricos etc, ideias (propagandas) e bens (publicidade), influenciando os comportamentos individuais e coletivos (como é o caso das redes sociais).
No entanto, o que se observa é que instrumentos tão importantes para a formação da opinião pública ainda não são direcionados para o bem-estar de todos, com a intensidade que possuem, divulgando muito mais ações humanas prejudiciais à vida dos cidadãos, à família e ao meio ambiente; do que promovendo a sadia comunicação, conforme os princípios do art. 221, I a IV, da Constituição de 1988.VI


2.1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: DEVASSAMENTO DA INTIMIDADE FAMILIAR

A violência, constantemente divulgada nos noticiários, apenas banaliza e desumaniza os cidadãos, sobretudo jovens e adolescentes, no que se refere à dignidade da mente, do corpo e da vida, como valores axiais de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF).VII
Em particular, tome-se a violência doméstica, como triste exemplo, divulgada pelas redes de comunicação, ferindo, frequentemente, os mais elementares valores e princípios referentes à intimidade e privacidade das pessoas, conforme a Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, no seu art. 11:

1) Toda pessoa tem o direito de ter sua honra respeitada e sua dignidade reconhecida.
2) Ninguém pode ser objeto de interferência arbitrária ou abusiva em sua vida privada, sua família, seu lar ou sua correspondência, ou ataques ilegais à sua honra ou reputação.
3) Toda pessoa tem o direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.VIII 

A vida privada deve ser (precisa ser) preservada de incursões indevidas, indiscrições abusivas, em que as desonras individuais e familiares se coloquem à mostra, sem contribuir, em nada, para o bem de todos, por mera “espetaculização”, perdendo o sentido de informação. Destaque-se o que dispõe a Resolução nº 428, de 23 de janeiro de 1970, da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, sobre a intimidade como um bem:
O direito ao respeito à vida privada consiste essencialmente em levar sua vida como entender com um minimum de interferências. Diz respeito à vida privada, familiar e comunitária, integridade física e moral, honra e reputação, ao fato de não ser apresentado sob um falso vislumbre, à não divulgação de fotos inúteis e embaraçosas, à publicação sem autorização, de fotografias privadas, à proteção contra a espionagem e às indiscrições injustificáveis ou inadmissíveis, à proteção contra a utilização abusiva de comunicações privadas, à proteção contra a divulgação de informações comunicadas ou recebidas confidencialmente por um particular.IX
No entanto, havendo necessidade de uso de imagens, fotografias, documentos privados etc, além dos limites legais, representados pela necessidade de informações jornalistas, devem ser resguardados interesses de terceiros e vulneráveis.
Campanhas virtuais e redes de apoio em defesa dos direitos de mulheres, crianças, idosos, moradores de rua, dependentes de drogas, transgêneros, dentre outros segmentos vulneráveis, trazem à tona perante a sociedade o descaso das políticas públicas em questões de violência e invasão da vida privada e familiar.
Para a violência psíquica sofrida pela exposição indevida aos meios de comunicação, embora haja remédios legais para a reparação pecuniária do dano havido, ou a tipificação penal da ação ou omissão praticada, torna-se, sob o ponto de vista moral irreparável, adoecendo física e mentalmente a pessoa atingida.
O instinto de vingança têm incentivado postagens violentas nas redes sociais, expondo situações íntimas de casais, nudes e outras perversidades que constituem a revenge porn.x
Pesquisas evidenciam a crescente onda de violência no ambiente familiar, onde mulheres, crianças, idosos, serviçais domésticos, pessoas com deficiência, dentre outros, são agredidos física e moralmente, sem que haja resposta institucional à altura.xi
Estatísticas oficiais relatam dados alarmantes em que estupros de crianças e adolescentes são cometidos por homens próximos (parentes, vizinhos, amigos da família).XII
Por outro tanto, estupro e racismo evidenciam o ódio interrracial e o menosprezo pela dignidade das pessoas negras; conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) torna público.xIII
O SUS – Sistema Único de Saúde nos atendimentos efetuados constata que duas em cada três pessoas vítimas de violência doméstica ou sexual são meninas e mulheres.xiv
Acrescente-se a este cenário tenebroso a violência de gênero na internet; a divulgação de registros íntimos e o seu compartilhamento digital; violações da dignidade e intimidade da população LGBT, conforme Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil.xv
Ainda que breves, as referências precitadas deixam evidentes os traços perversos das ofensas aos direitos fundamentais, em particular o princípio ético da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).xvI

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015), tem por meta principal a transformação do “nosso mundo”, cuja base é “[...] a decisão de construir um futuro melhor para todas as pessoas, incluindo as milhões às quais foi negada a chance de levar uma vida decente, digna e gratificante e de alcançar seu pleno potencial humano” (item 50).XVII
Quanto ao Objetivo 16 da Agenda Global precitada, visa “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”.xvIII
Dentre as metas do Objetivo 16 está “reduzir significativamente todas as formas de violência e as taxas de mortalidade relacionada, em todos os lugares” (16.1). xIx
Em especial, o Objetivo 5 da Agenda se propõe a “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.xx
Neste último caso, o Objetivo 5 procura “acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte” (5.1) e “eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas” (5.2). xxI
Quanto às influências da mídia na formação da consciência crítica social face à violência doméstica foram referidas no texto a banalização da violência, a espetaculização dos fatos e a invasão da privacidade e intimidade domésticas como efeitos negativos; ao passo que se deixou evidente que os mesmos instrumentos de comunicação, representados pela imprensa, pela mídia televisiva e as estatísticas oficiais e privadas, podem conscientizar a sociedade da urgente necessidade de respeito e proteção à família.



1. Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODS). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1º lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3º lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1º lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético. Troféu Imprensa Brasil 2017 e Top of Mind Quality Gold 2017.Membro da Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia – AVIPAF, Membro Titular do Comitê de Ética em Pesquisa do Unicuritiba (2018).

2. BRASIL, Constituição (1988). Disponível em: <https: //www.planalto.gov.br>

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