Nic Cardeal: Poemas de sobrevivência à quarentena



SENHA


O crepúsculo é esticado,
nenhuma estrela cadente atravessará os céus realizando desejos,
não é de desejos que se alimenta o broto,
mas de algo tão mais genuíno e íntegro.
Esquece o desejo,
livra-te dos anseios,
o vento segue sua rota independente dos obstáculos,
a água escorre pelos veios, pelas veias, pelos vãos,
porque sua natureza é seguir o curso.
- Qual é teu curso na natureza? -

Lembra daquela casa antiga na colina,
os pássaros fazendo ninhos, despreocupados,
os frutos sabendo quando é hora de tombar ao solo
para a regeneração da semente.
- Ninguém sabe da vida melhor do que a própria -

Depois do agora um futuro não se sabe quando,
o que é demorado nem sempre se alcança,
na pressa gasta os sapatos apertam.
- Aprende o ritmo da espera, da véspera, da partida,
um passo de cada vez no caminho mais estreito -

O crepúsculo é denso - eu também sei -
nada se desfaz antes da hora,
ergue-te acima do horizonte das incertezas,
e não esqueças da abelha buscando o pólen na flor de laranjeira,
nem da formiga carregando o fardo mais pesado,
ou da cigarra que canta sem descanso,
anunciando um tempo logo ali (ou distante) de felicidade.

Os ciclos se repetem, os homens se repetem, os sonhos se repetem,
nunca estranhes o gole amargo da angústia,
ou a falta de notícias dos outros mundos inteiros,
lá longe nas galáxias.
Não percas a rota,
nem arrebentes a porta!
- Esquece a porta: a saída tem outra chave,
nós um dia já soubemos a senha! -

(Nic Cardeal - poemas de sobrevivência à quarentena)


Arte digital de Isabel Furini

BIOMA

97 tartarugas-de-pente nascem na praia
borboletas voltam a fazer revoada em azuis
- já não correm risco de congelamento em casamentos hostis -
cisnes deslizam pelos canais de Veneza
golfinhos, felizes, sobem à superfície das águas
peixes recém-nascidos brincam de felicidade na foz do rio
capivaras passeiam destemidas no parque
homens são vistos recolhidos em suas tocas.
(Depois da doença de homem a Terra respira aliviada).

(Nic Cardeal - poemas de sobrevivência à quarentena)





LONGA NOITE

Quase eterna, longa a noite
velas acesas, candelabros ou lampiões
perderemos o rumo, o prumo, a razão
cairemos em tentação
buscaremos a voz, o olhar, algum sentido maior
sonharemos mundos inteiros de amplidão
as janelas continuarão abertas, azuis em brancas nuvens
pássaros ensinarão liberdades inteiras, em asas pequenas,
à nossa prisão - asa quebrada de uma quina -
os dias, um a um, passarão
os homens, também, um a um, passarão
- alguns, muitos, passarão -
precisaremos aprender antigas rotas de despedidas

Longa noite, imensa e vazia
desejaremos um som, um ruído, uma cantiga,
ventania, passos na escada, paz tão antiga
um grilo, um sabiá, um jorrar de lágrimas
qualquer coisa dos desejos das horas findas
- que nos alcance logo esse outro agora, que já se demora -

Longa noite que se anuncia
desesperados, seremos rebeldes, covardes, intempestivos
gritaremos a esmo, a rodo, aos loucos
perderemos a ótica, a lógica, a noção
sentiremos o palpitar - ao longe - de algum outro coração
buscaremos esperanças, certezas, sentidos
ao mundo seremos rendidos
não poderemos apagar os fatos, retroceder os mortos
- passos em falso nos fizeram coautores irresponsáveis do colapso? -

Longa noite,
o que será do outro dia com novas auroras?
esperanças-fênix depois das cinzas?

(Nic Cardeal - poemas de sobrevivência à quarentena)


Nic Cardeal é catarinense, graduada em Direito, autora do livro 'Sede de céu – poemas' (Penalux, 2019), e tem participação em diversas antologias nacionais e internacionais. Seus escritos estão na página no Facebook ‘Escrevo porque sou rascunho’

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