Flavia Quintanilha: A liquidez do mundo está em mim

 


A liquidez do mundo está em mim

“A má moeda tende a expulsar do mercado a boa moeda”. É usando a lei de Gresham que Bauman faz a apresentação de seu livro Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Para  Bauman a capacidade humana de amar é fatalmente falsificada por um traço da modernidade que ele chama de líquida por se alterar rapidamente e que devido a isto os sinais que recebemos são confusos, nos influenciando a ação. Esta alteração imprevisível nos leva a manifestar o lado frágil das relações e esta a incapacidade dos vínculos. Aplicando a lei de Gresham – que “diz que uma moeda sobrevalorizada (que tem um valor determinado por uma autoridade monetária acima do de mercado) expulsa uma moeda subvalorizada (que tem um valor determinado pela mesma autoridade abaixo do de mercado) – Bauman diz que “as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”. Em outras palavras o autor afirma que as relações virtuais parecem ser feitas sob medida à realidade líquida desta modernidade atual. Voltando a lei de Gresham, a má moeda expulsa a outra devido ao câmbio sem sentido com a realidade e que aqui chamarei de trocas, ou seja, o grande problema é definir o “relacionamento”.

Bem, o tema que proponho hoje é pensar no amor, mas não pretendo me aprofundar no livro acima referido e sim tomar a questão da fragilidade dos laços. Em outras palavras, abordarei de nossa profunda e explícita fraqueza quando o que falamos é revelar-se. E para isto quero contar uma história de ficção que assisti semana passada. Refiro-me a série The One que está no catálogo da Netflix. Por favor, não pensem que estou recomendando que assistam, até porque a história promissora de um bom filme de ficção limita-se a um enlatado policial. O que me interessa mesmo é a ideia que é sustentada na série: a possibilidade de encontrar através de codificação genética o parceiro ou parceira para toda a vida, a sua metade. Eu sei, eu sei, não precisamos de uma metade porque somos inteiros e blá, blá, blá. Calma, não é sobre isto, vou para a história…

Imagine que a biotecnologia evolua de tal forma que seu código genético possa ser cruzado em uma base de dados com o interesse de encontrar o amor da sua vida. Que isto seja mesmo possível. E que quando isto acontece é como se já a conhecesse, já soubesse tudo desta pessoa e … foram felizes para sempre. Na hipótese levantada sugiro que pense no número de corações partidos que se  evitaria, muito mais que isto, pense no alto grau de eficiência e produtividade que os humanos passariam a ter. Quem nunca faltou a um compromisso por estar desapontado com relacionamentos falidos? Pense no tempo em que a humanidade economizaria…

Pensei muito sobre isto. Pensei tanto que estou fazendo este texto.


Sabe, o que me parece é que a humanidade vive um grande dilema: quer viver o amor, mas tem medo de deixar de ser livre. Afinal são tantas possibilidades não é mesmo. E assim alguns vivem aquela dúvida que sopra aos ouvidos vez ou outra: quando se está só (_ Ah, que falta me faz um amor); quando está com alguém (_Ah, que saudade de não ter compromisso). Isto para quem se permite ao compromisso, desprezando assim o “valor do mercado”. O lance da moeda má e boa, lembra? Quem dá o valor é uma instituição financeira, ou seja, algo externo. E estamos tão sujeitos ao “valor de mercado” que acreditamos nele. E nos submetemos à ele. Facebook, Instagram, Tinder, etc. É certo que Bauman estava preocupado com as fragilidades das relações, esta coisa de: deleto se não me agrada. Mas isto tudo tem alterado a própria visão de si mesmo. Essa busca por uma identidade, a invenção da identidade. Tudo, tudo, tudo o que vivemos é ficção. O amor a maior delas. Desta maneira pelo menos. Tudo está mediado a uma condição moral valorativa. É maravilhoso pensar que podemos ser livres a tal ponto a não obedecer regras disto ou daquilo, mas ninguém até hoje construiu uma casa sozinho. E posso enumerar tantas coisas. Queremos estar “livres” (liberdade no sentido de escolher o que e quando), mas não conseguimos estar sós. Então penso que o grande lance, a grande dificuldade é o quanto estamos para o que queremos.


Voltando ao Bauman “nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais ou temporais. Eles não têm necessidade ou uso que possam ser justificados pela líquida racionalidade moderna dos consumidores. Vínculos e liames tornam "impuras" as relações humanas — como o fariam com qualquer ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea obsolescência do objeto consumido.”


Ao que parece não cai bem “fixar-se” a qualquer coisa, situação ou sentimento e isto causa o efeito tenebroso de se negar a entrega, a dedicação. Não se é mais permitido construir em parceria, pois isto tolheria a possibilidade de êxito pessoal. Uma espécie de negação aos vínculos que vai se estendendo a tudo o que se faz. E assim, cada sujeito vive para satisfazer o seu desejo particular sem ter qualquer objetivo em comum. Uma busca estéril de ter sem dar. Olhando desta maneira fica fácil entender a condição atual do Brasil em face a nefasta realidade diante a uma pandemia. Não se olha o todo como algo único, não se é permitido olhar para o país como o objetivo comum, tampouco a vida do outro como um valor assim como a sua própria vida. Uma triste paisagem sem futuro e que afirmamos a cada dia, com cada morte.


A vida é curta e longa. Curta quando nos deparamos com o fim, é pouco tempo para fazer tudo o que desejamos. E longa, muito, muito longa quando sofremos. Poderia agora passar a falar do amor de si e para sim ou até uma abordagem ética sobre liberdade, mas quero terminar por aqui compartilhando minha grande dúvida.

 Por que estamos aqui? Posta de outra maneira, o quanto de mim está em tudo a minha volta?


Flavia Quintanilha poeta londrinense é doutoranda em filosofia pela Universidade de Coimbra. Atua como membro colaborador no Instituto de Estudos Filosóficos na mesma instituição e é editora associada na Philosophy International Journal. Publicou os livros Aporias da Justiça (Novas Edições Acadêmicas, 2015) e A mulher que contou a minha história (Kotter – Selo Sendas, 2018). Compõe as antologias Sarau Brasil 2019, Prêmio Poesia Agora – Inverno e Antologia Ruínas (Patuá, 2020). Tem poemas publicados na Revista Literatura &Fechadura, na Revista Carlos Zemek e na Revista Torquato.” Em 2020 recebeu a Menção Honrosa no XVIII Concurso “Fritz Teixeira de Salles” de Poesia pelo poema “Estrela”. Seu novo livro Desabotoar está sendo lançado pela Editora Patuá.

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