Flor-de-capitão - Conto de Regina Ruth Rincon Caires

 


FLOR-DE-CAPITÃO


O quarto menor da casa era reservado para as visitas. Apenas a cama e um velho baú de madeira, reforçado com tiras de metal, compunham a mobília. As alças do baú já não existiam, sobraram apenas os sinais do encaixe. A chave ficara perdida em algum lugar, nas muitas mudanças. Colocado sobre pilhas de tijolos, que o erguiam do chão, ficava protegido das constantes lavadas do piso. E guardava segredos. Ali ainda ficavam umas poucas vestes da avó, trazidas de além-mar. Acomodava velhas cobertas feitas no tear, roupas de dançarina, xales enormes, o pente com o véu. E as castanholas. 


O deleite da menina era revirar aquilo tudo. Perdera a conta de quantas vezes havia realizado o mesmo ritual de desdobrar e dobrar as peças, passar os dedos pelos bordados, espetar o pente nos ralos cabelos, arrastar o véu e os xales pelo chão.  Sempre sob o olhar saudoso e atento da avó.  


Um dia, percebeu que, sob as pesadas cobertas, havia um embrulho. Curiosa, quis saber do que se tratava. A avó, pacientemente, contou que eram sementes de flor-de-capitão, e recomendou que a menina não mexesse ali, pois elas não poderiam ser plantadas, nunca. As sementes tinham sido dadas pela comadre da avó, com a sugestão de que fossem semeadas no entorno da horta. A florada traria borboletas, abelhas e as hortaliças ficariam mais viçosas e saborosas. Mas, depois de uma conversa com o avô, ficara terminantemente proibida a semeadura. Irritado e em desacordo, ele havia falado que aquilo era uma praga, que infestaria as plantações, as pastagens. Enfim, era uma ordem: as sementes não poderiam ser espalhadas.


A menina, pouco convencida, fechou o baú. Foi para o terreiro, brincou, chegou mesmo a esquecer do embrulho sob as cobertas. O dia passou quente, mas a tarde começou a ficar carrancuda. Enormes nuvens espalhavam-se pelo céu, nuvens negras. E, junto com o baixar do sol, veio a lembrança das sementes.
Correu até lá. Aproveitou que a avó estava ocupada com a cata dos ovos, distante dali, abriu o baú, retirou tudo com muito cuidado e encontrou o saco de papel abarrotado de sementes. Pegou o pacote, colocou-o no chão, voltou as roupas no lugar, tudo arrumadinho. Abraçou as sementes, olhou de um lado, do outro e saiu em disparada antes da chegada da avó. 


Lá fora, o tempo havia fechado por completo. Trovões, relâmpagos. Começou a ficar espantada. Queria abrir o pacote, mas precisava voltar para casa. Andou um pouco na direção do cafezal, ajeitou-se sob a saia do pé de café e começou a desembrulhar as sementes. Eram muitas, excessivamente frágeis, parecidas com minúsculas folhinhas secas. 


Um relâmpago intenso clareou o céu, um trovão ensurdecedor ecoou e a menina, de susto, quase engoliu a língua. 


- Tinhoca! Tinhoca! Anda menina! A chuva vai ser braba!
De longe, as vozes da mãe e da avó gritavam o nome dela. Precisava ir, e precisava guardar as sementes! Como?!


Não teve saída. Acomodou o embrulho no tronco do pé de café, planejando que voltaria na manhã seguinte para buscá-lo. Feito isso, saiu desembestada para casa. No caminho, o vento a deslocava do chão. Bastou colocar os pés no alpendre, a chuva veio feito dilúvio. 


À noite, deitada, imaginava como iria secar e embalar as sementes para guardá-las novamente no baú. E, arquitetando, conjeturando, dormiu.  
Acordou com o mugido do gado no curral. Correu para a porta da cozinha, a chuva havia parado, a umidade cobria tudo. Mal trocou de roupa, passou a mão num embornal e rumou para o esconderijo das sementes. 


Não havia pacote, não havia sementes. Vasculhou tudo, andou por várias fileiras de pés de café, pelos carreadores. Nada. Tudo era barro vermelho, lama. A chuva de vento varrera toda a roça, desfolhara o cafezal.


E as sementes?! Como explicaria?
Ficou pensativa por alguns dias. Depois, esqueceu...


E os dias corriam. A menina não teve mais vontade de mexer no baú. Quando lembrava, empurrava a ideia. Nem passava pelo quarto.


As chuvas se foram, o sol reinou escandaloso, as plantas pareciam ainda mais verdes, as flores coloriam tudo. As flores?!
- Tinhoooooooooooca!!!                                                       

Regina Ruth Rincon Caires

 

Fotografia de Regina Ruth Rincon Caires


Comentários

  1. Como curto texto de memórias. Eu sei que são memórias não vividas pelo autor e sim por seu eu-literário, mesmo assim por ver em minha própria infância possibilidades como essa, sorrio com toda a criança tinhosa que Tinhoca representa! Parabéns para a autora e para a revista.

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