Dia da Dança: Gorri - Conto de Cadu Matos

 








Gorri



Uma das passagens mais instigantes do tango Melodía de Arrabal é a seguinte: “Barrio, barrio, que tenés el alma inquieta de um gorrión sentimental...”.

Confesso que a alma inquieta do bairro não me despertou muita curiosidade. Mas a do gorrión, de um pardal portenho sentimental... como se manifestaria? Este conto nasceu dessa indagação.

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Era um pardal de Buenos Aires, desses de alma inquieta, sentimental na última. São absoluta minoria na pardalândia, pois seus irmãos em geral só pensam em ciscar, comer insetos e transar com as pardalhocas. (Sempre quis usar essa palavra, feminino de pardal, aprendi no ginásio.) Ele, não. De vez em quando tinha arroubos de generosidade, e investia contra passarinhos prestes a devorar suculentas minhocas. Algumas, poucas, sobreviviam, e mergulhavam na terra sem entender nada. Poucas, porque na hora o instinto falava mais alto e ele devorava o bichinho recém-salvo. Mas umas duas em dez escapavam. Com outras aves, nenhuma.

Além da generosidade, a coragem era outro sentimento presente dentro de seu peitinho emplumado. Afinal, enfrentava aves maiores que ele para salvar insetos – ou substituí-las no banquete. Reconheceu que era um super-herói alado e adotou o codinome de Gorri (diminutivo de gorrión, pardal em castelhano). Super-heróis precisam ter um nome de guerra, mas só se chamava Gorri ou super Gorri quando tinha uma missão a cumprir.

Uma tarde, ele sobrevoava a capital portenha quando viu, lá embaixo, a filmagem de O último tango em Buenos Aires. O diretor registraria um casal tangueando de manhã, à tarde, à noite e de madrugada. A ideia era mostrar o desejo tomando conta dos corpos (e o tédio e o cansaço também, mas nisso o diretor não pensou). O pardal viu uma ave grandona (dois pés, só podia ser uma ave) arrastando pelo chão uma ave um pouco menor; depois levantou-a e colou seu corpão no dela, que nem ele fazia com as pardocas (outro feminino de pardal). Depois a afastava e a trazia de volta, rodando. Ela não estava gostando, levantava a perna como se quisesse atingi-lo aliii, mas não conseguia, vai ver não tinha força...

O pardal viu tudo aquilo, sentiu sua alma inquieta crescer em seu peito, invocou o super Gorri e investiu contra a avezona. Desviou pouco antes de atingi-la. Mas foi o suficiente para estragar a dança dos profissionais de tango, professores renomados, carancanfunfas de responsa.

- Corta, porra! – berrou furioso o diretor. – Que foi isso?

- Foi um pardal maluco, quase furou meus olhos – exagerou o tanguero.

- Vamos continuar a filmagem do tango da tarde!

Mas não deu. O galã dançava assustado, olhando pra cima, pronto para escapar de uma nova investida kamikaze de um pardal. E a mulher não parava de rir, sempre achara o bailante um otário, a avezinha havia comprovado isso. O nível de sensualidade, essencial à dança, caiu a zero. Exasperado, o diretor interrompeu a filmagem. Continuaria outro dia, decidiu.

Só que esse dia nunca chegou. Faltou dinheiro, ou tesão, o fato é que o Orson Welles portenho desistiu e assumiu uma vice-presidência nas empresas do pápi. Assim, graças a um pardal de alma inquieta, o mundo foi poupado do pior filme jamais produzido na história da sétima arte, 

Cadu Matos

Imagem gerada pela IA do Bing


Comentários

  1. Parabéns por divulgarem este admirável conto de Cadu Matos, um escritor que despontou como um dos melhores da atualidade. :) https://enfimsetenta.blogspot.com/

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