Rozana Gastaldi Cominal: As tessituras do amor

 


AS TESSITURAS DO AMOR 

Resenha por Rozana Gastaldi Cominal

Ao alinhavar algumas considerações a partir da leitura do e-book AMOR, AMOR, AMOR tecendo emoções de Isabel Furini, publicado pela Toma Aí Um Poema, disponível na Amazon, faço um pequeno recorte de Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes que traz a percepção de que “o discurso amoroso é hoje de extrema solidão”.  O que torna o amor isso que ele é? Essa questão central na obra de Barthes também está presente na de Isabel Furini que bem sabe que “a literatura não permite caminhar, mas permite respirar”. Como Roland Barthes: “Temo-nos no que ficou do fugidio encontro, na ternura renovada que nós inventamos ou recriamos. Ou na lembrança”.

Seres desejantes e dispostos a encontrar o par ímpar no salão de dança?  Por que não? Vêm as perguntas: “cadê a caneta? cadê o poema? / eles estão apaixonados/ sentem o convite da música/ e abraçados/ dançam uma valsa de Strauss/ sobre a estante de madeira/ de uma antiga biblioteca// encantados/ a caneta e o poema dançam/dançam/dançam/ dançam” (p.127). Diante da dança das cadeiras e dos dilemas (p.91): “ver o poema transformar-se em oceano// nesse amor que nunca foi, mas sempre é”.

DO AMOR

Ao pegar a cesta de costura (p.40), me deparo com  “agulhas/ costuram paixões/ remendam desafetos/ e bordam afetos// dedos/ orientam agulhas/ e arquitetam/ universos paralelos//  fios/ marcam pontos cardinais/ sentimentos/ e esses amores perfeitos/ que a cruel vida nos negou”, ai que agulhada levei ao reler “esses amores perfeitos/ que a cruel vida nos negou”, porque, longe da perfeição, meu conceito de amor vai ao encontro do Poetinha consagrado pelos versos: “Que seja imortal posto que chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.  

Mas o folhear digital acalmou meu coração. Ao perseverar na construção diária deste sentimento, Isabel Furini constata que “na arte do amor somos aprendizes/ - alguns riem, outros choram e os românticos flutuam/ entre ondas de incerteza” (p.257), porque amor é escolha a cada amanhecer, ufa!  

Sobre o amor (p.304) assegura a autora que, dessa invenção do século 12, o instinto da humanidade se mantém cativo: “o amor é eco da alma do universo/ avança em prosa e verso/ como um tsunami/ derrubando muros de preconceitos”. No mosaico do tempo (p.181): “linhas amorosas regridem e avançam/ reencontrando-se/ reinventando-se/ no espaço sideral dos olhares// a alma procura o amor”.

Se Shakespeare e Goethe imortalizaram o amor romântico, aquele que sofre até a morte, Isabel Furini encerra com maestria o ciclo amoroso em epílogo (p.316): “o amor pode ser arrastado/ por abismos invisíveis/ e deslocado/ de antigas fotografias/ para ser glorificado nos reinos/ da poesia e da dramaturgia// pois amar é uma arte/ (com âncoras de lírios e de ferrugem) / capaz de realizar um movimento espiral/ para elevar a alma/ do pantanal do ódio/ até as estrelas longínquas”. 

Ao vagar pelas texturas do veludo, da seda, das palavras, das estruturas   selecionadas, vislumbro sua atitude (p.187): “a beirada do abismo do amor/ é tão afiada/quanto um bisturi” que se intensifica com o abraço (p. 269): “é manifesto de emoções/ surge quando a alma/ com sabedoria/ decide exprimir seus sentimentos/ criar profundos laços/ e sem mexer os lábios/deixar que os braços/ enviem uma mensagem de amor”.

Por esse viés, as fisionomias do amor (p.117) entram em cena, “pois o amor tem asas/ abre os portais/ mas também tem couraças/ o amor é omisso/ e não aceita compromisso// finge ser inofensivo/mas com seus dentes de felino/ fere a pele/ e o músculo cardíaco”, gaba-se que nele “há um redemoinho de emoções”. Emoções cravadas no céu e na terra: “o amor/ - essa ave que ontem cantava ao amanhecer/ e hoje permanece escondida/ no imaginário bosque do amanhã” (p.181).

Dissimulado, o amor não arreda o pé, realça a sedução no inverno da vida (p.121): “ouço a sua voz aveludada/ o inverno se torna primavera/ é possível ouvir entre as ondas/ as vozes enganadoras das sereias”.   Ressoa a fala do corvo (p.87): “amar conduz à criação de um universo paralelo” / é a fascinação de olhar o próprio rosto/ nos olhos do outro/r de perder-se na grandiosidade desse olhar”; “fala um corvo agoureiro// o velho Eros é titeriteiro experiente” capaz “de transformar dois adultos racionais/ em crianças inconsequentes”.

Descortina sem limite? Para as “mentes quadradas”: “qualquer loucura será perdoada/ menos a loucura de amor” (p.100).  Por isso fico com os/as poetas. No soneto Confronto, Drummond personifica o Amor e a Loucura, pois ambos passam por profundo sofrimento: “A Loucura desdenha recebê-lo, /

sabendo quanto o Amor vive de engano, / mas estarrece de surpresa ao vê-lo, /

de humano que era, assim tão inumano”. E o acolhe: “Entra correndo, o pouso é teu. / Mais que ninguém mereces habitar/ minha casa infernal, feita de breu”. Essas percepções – onde há amor há loucura – exibem o quanto “amar ajuda a enfrentar os fantasmas/ e a suportar as sombras/ pois amor é um istmo/ entre a cabeça e o instinto// o amor seduz e conduz/ pois é o pescoço do mundo” (p.98).

DA PAIXÃO

Pois é, o Cupido não deixa em paz os corações apaixonados, suas flechas atingem o alvo com a textura da paixão e suas incoerências. A rodopiar (p.142): “nos gemidos de paixão/ ecoam/ as danças antigas/ e rodopiam/ e açoitam a pele/ e tensionam/ e quebram espelhos/ e pressionam/ o calcanhar de Aquiles”. Sentimento efêmero (p. 94): “entrega a alma em um abraço/ enquanto vasculha na pele do outro/ o batimento arrítmico do próprio coração, arremata o quanto a paixão tem prazo de validade é reação química: “arrepiam-se os ombros com olhares de ternura”. Instala-se de fininho (p. 225): “da cabeça/ (se a paixão domina) / a razão/ discretamente se retira”.

Paixão sorrateira como escorpião: “esperando/ esperando/esperando/ um olhar denso/ um gesto tenso/ e um coração indefeso/para injetar seu veneno sedutor” (p.232).  Desatino eterno feito Titanic (p.193): “dança sobre as ondas do mar/ e enquanto colide/ contra algum iceberg emocional/ sonha com portos desconhecidos. De forma abissal (p.107): a paixão “pode provocar deleite ou amargura”, pode morar “em um poço/ ou entre as pétalas de rosa”, pois é “ser abissal gerado pelo fogo hexagonal dos desejos”. Estende-se pela areia (p.236): “terreno de areia movediça/ um leve/ bater/ de asas de uma borboleta/ e as areias movediças da vida/ pulam da ampulheta/ e engolem o encantamento/ e a paixão”.

Se é loucura de amor o que deseja: “me ame enlouquecidamente/ com olhares imprudentes/ ardor instintivo/ impetuosidade/ quero que faça alarde de nossa paixão”, aguente depois o “vulcão em erupção” (p.81). Saiba que sofisticadas são as artimanhas das exigências que envolvem a teia do destino das “almas apaixonadas” (p.62). É o preço do deslocamento: “... e a paixão agita o músculo cardíaco/ circula pelos ossos/ esconde-se entre as pálpebras/ descobre antigos alfabetos/ transforma-se em poema/ e pula sobre os muros/ e grita/ e blasfema” (p. 65).

DOS CIÚMES

Sempre desconfiei de quem se diz ciumento (p.292), tanto que em “como explicar que o coração ciumento/ pode ser atingido em qualquer momento/ pelos ventos matreiros do passado” imagino que a poeta não quer se render ao puro despeito. Sabe que ciúmes incontroláveis (p.294) enclausuram o passado “como um peixe prisioneiro/ no lago de uma caverna/ onde o carinho foi asfixiado/ pela atmosfera tóxica”. 

Se o amor cegar, pode levar à morte dos vaga-lumes (p.297): “amor é selvagem/ e é transformado pelos ciúmes/ em um deglutinador de vaga-lumes quando o amante tem medo “de não ser amado”. Isso é de doer. Salienta a insensatez (p.144): “a paixão é insensata/ confunde a cabeça/perturba o sono/ inquieta o coração/traumatiza/e, às vezes, mata”. Esquece que quem ama não mata, não fere os sentimentos da/o outra/o quando não correspondido, justamente, porque que se diz ser zelosa/o por alguém. 

Se for tomado por aquele vazio (p.289), “sem sensibilidade, sem sentimento”, porque sem amor “a vida/ é xícara vazia/ rio seco/ longínqua estrela”, saiba que de ameaçada poderá sair “fortalecida” porque “construiu uma nova realidade/ e uma nova constelação de sonhos// - a paixão fugiu entre os dedos/ mas renasceu o amor-próprio/ e a esperança” (p.279).



DA AUTORA

A literatura de Isabel Furini mais uma vez pede passagem como artesã da palavra que nos revela o quanto tem sido fértil a sua vasta e diversificada produção literária. Sua poesia premiada com publicações e honrarias correm pela língua portuguesa e pela língua de Cervantes. Mulher que escreve deixando suas marcas em livros físicos e na blogosfera poetizando o mundo. Em AMOR, AMOR, AMOR, tecendo emoções atiça nossos sentidos pela linguagem afiada carregada nos versos curtos e precisos de curva, abraço e noite (p.274): “a curva/ da flecha/ do rio/ da rua/ e da mão que escreve o poema// o abraço da vida/ da morte/ e do olhar do amado// na noite de solidão”. A obsessiva lembrança vem à tona como um convite à dança (p.248): vamos “realizar nossos sonhos de amor?”. Contagem regressiva: “beijos e carícias/ suspensos// o amor pode ser ardiloso/ suspeito/ ter defeitos//, mas sem o amor/ o mundo é só o parapeito/ da janela do ódio” (p.49).

Em outros, nada deixam a desejar a Camões em “amor é fogo que arde sem ver”, desfilam  preciosas metáforas: “a essência do amor é um cinzel/ capaz de escrever no coração"/:/ ‘eu te amo/ amar-te-ei para sempre’”, em almas livres (p.21); “o amor é um hospício/ resguardando loucuras” em purificados (p.158); “a paixão é escorpião/ irrequieto/ dançando” em o veneno do escorpião (p.232) ou ainda atinge o imprevisível: “um eterno Titanic/ é a paixão// entrega-se sem limites” (p.193).  Por fim, o auge em metaforicamente (p.138): “dançar entre metáforas/ surfar entre ondas de verbos/ semear estrelas sobre a areia/ utilizar arco e flecha/ para caçar palavras vadias/ que fogem da mente/ e no momento de poetizar o amor/ percorrem o caminho das sombras/ procurando sexuais ecos selvagens// ofegantes ecos que arquejam entre vocábulos antigos/ e beijam as bocas lascivas dos Centauros e dos Faunos”.

Foi com satisfação e experiência que absorvi o registro do amadurecimento dos poemas de Isabel Furini. Isso requer filtro de emoções e de vivências do quanto amar é exigente experimento que nos desafia diariamente. De sua argamassa (p.110), extraio: “os prisioneiros trituram navalhas e tecem a emoção de um grande amor”, movida pela música, “a emoção dança/ dança/ dança/ mas desaba quando discursa a razão”.  Para conjugar “o ardiloso verbo amar”, faça uma coreografia “de seus sonhos mais doidos/ desses amores passionais, loucos/ que deixam o coração sufocado, rouco”, exorcize a poesia passional (p.114). 

Atrevimento de minha parte ousar dizer que sou contemporânea dessa autora porque estou engatinhando no circuito das letras e publicações literárias, no entanto afirmo que compartilho de seu ardil (p.151): “um mágico/ que é um alfaiate e é poeta/ com palavras de carinho/ e beijos de chocolate/ costura ardilosos versos/ (versos santos e perversos) / em uma antiga rede/ que captura borboletas/ e esqueletos”.

Diante da incerteza (p.262) “nada é eterno”, “até o amor tem prazo de validade/ e algumas vezes é transformado em saudade”, eis como embaralhar o ciclo (p.230): “dar tempo ao tempo/ e na busca de um novo amor/ observar/ (sem espanto e sem grito) / a serpente da eternidade/ devorando a própria cauda/ em um ciclo de amor-ódio/ infinito”. Amar é para quem tem coragem, não existem amores perfeitos. 

Fica o convite para a leitura do livro, para que você também possa experimentar esse verbo (p.259) “gelado” que “queima/ e preenche as horas com abraços e beijos/ e quando se afasta deixa cicatrizes indeléveis/ - esse é o poder do verbo amar”. E “observe como os corvos/ voam perto dos loucos e dos poetas/ e crocitam nomes antes de começar a voar” (p. 211), sim, sempre os corvos, não os tema, apenas ame.


Comentários