O SONO DE GOYA
"Que ninguém possa jamais esquecer esta noite.
Hoje, tocarei a flauta de minha própria coluna vertebral."
(Vladímir Maiakovski)
Sonhei com serpentes mortas
dentes cerrados, ventos distantes
touros de olhos azuis,
festins negros e maré alta.
Quem soprou esses ventos
nas flautas das vértebras
e verteu febre nos dedos
para que compuséssemos vendavais
e folheássemos o diário de ouro
que o Deus tocou
que só nos fez chorar?
Quem varreu os cílios
com o zoom sorrateiro
da visão do sem nome?
Quem disse:
– Quem beber dessa água lembrará –
essa é a fonte da memória
Quem disse que era Deus?
POEMA PARA COMPREENDER AS ESTRELAS
I
Eu apenas sei a eternidade
dentro da noite quântica do azul profundo,
porque dentro do âmago dela
a noite de todos os dias, devagar,
se apõe, se revela e desce.
Elementos para compreensão da noite quântica:
A noite quântica no jardim de si é para o infinito.
A lua na taça seu cristal.
Não precisamos compreendê-la, só senti-la.
Estrelas e pétalas nos apontariam.
Se elas caem no jardim de si é porque desejamos tanto.
Previsão: é possível pressentir que para além do jardim de si
são duas noites belas.
II
Eu apenas pressinto
a chegada daquela a quem amo
porque no corpo da noite quântica
eu vi a supernova e era mais que uma estrela.
Compreensão da chegada daquela a quem amo:
Aquela a quem amo deixou-me para sempre esperando por nós.
Quando ela vier, encontrará tudo limpo,
o jardim bem cuidado, a casa arrumada, os suspiros
e sussurros dos lençóis lavados e uma saudade polida.
(Meu destino é ser perfeito em cada gesto quando ela chegar.)
Previsão: é possível pressentir que aquela a quem amo já não existe.
Obra da artista plástica Claudia Agustí (Patagônia, Argentina) |
III
Eu apenas adivinho o rosto de Clara Anabel
porque no cimo da noite imensa
a lua é um espelho dentro de mim
onde a face dela navega.
Elementos para compreensão dos traços de Clara Anabel:
O silêncio brinca de luz com margaridas
no rosto iluminado de Clara Anabel.
De cabelos crepe & cristal
ela me mostra o que o seu sorriso será.
Gargalham cerejeiras tristes num dia de sol.
À meia-lua no ventre da mãe, eu já sabia,
só ela sobreviveria. A mim,
cabe a tarefa imediata de guiá-la ao mundo.
Previsão: é possível pressentir que em mim e além, Clara Anabel gesta.
IV
Eu apenas pressinto a morte de meu pai
porque quando o vi pela última vez
eram ternos de augúrio seus olhos e eu bebia as suas palavras.
(Eu apenas consigo ver porque
caminhamos juntos num silêncio sereno
e nos ouvíamos tão alto)
Compreensão dos augúrios de meu pai:
Logo, o pai não estará mais comigo.
Daqui a pouco, o seu olhar se cristalizará, fixo,
na noite quântica do azul profundo.
Antes que aconteça, ele respira num chão de alfazemas,
dorme menos, come pouco, e tem os olhos injetados
de uma doçura não tão humana.
Meu destino é dar o primeiro beijo
em tudo o que ele já viu
para abrir os seus olhos mais adiante no ver profundo.
Previsão: se o pai deixa de existir eu agora sou o pai.
MARCIO DAVIE CLAUDINO é poeta e dublê de escritor (ghost writer). Premiado e selecionado em diversas antologias, as mais recentes em 2011, “Moradas de Orfeu”, organizada por Marco Vásquez, 20 poetas de cada estado do sul e, em 2014, “101 poetas paranaenses”, organizada por Hamilton Faria. Em 2007 lançou o livro de poemas “O sátiro se retirou para um canto escuro e chorou”, Imprensa Oficial do estado do Paraná e SEEC/PR. Em meados dos anos 90 formou com Adriano Smaniotto e Patrícia Pagu Claudino o grupo de poetas “Intervenção”, a partir de encontros na Feira do Poeta de Curitiba, do Largo da Ordem. Formou-se em Letras pela UFPR onde frequentou o Mestrado em Estudos Literários com estudo sobre a novíssima poesia curitibana. Já trabalhou com literatura e “vezemquando” frilas, no entanto não vive disso, apesar que gostaria.
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