EMOÇÕES E MEMÓRIA NO ESTÍMULO ABUSIVO AO CONSUMO
Maria da Glória Colucci.i
1 INTRODUÇÃO
Ao discorrer sobre emoção e razão, C.S Lewis, relacionando-as com diferentes situações enfrentas no cotidiano, assinala as dificuldades (e conflitos interiores) existentes na distinção entre o que é efetivamente dotado de “valor” (significado em si) e os sentimentos (emoções), que atribuem tal “valor” (ou desvalor) ao objeto “valorado”.ii
Emoções de admiração e prazer; de medo e dor; amor e ódio; alegria e tristeza, dentre outras, podem (e efetivamente assim ocorre) deturpar a racionalidade crítica necessária às circunstâncias, aos sentimentos próprios ou alheios envolvidos; aos bens materiais ou imateriais apreciados. Neste viés, anúncios, avisos, comunicados, imagens (propositalmente ou não) podem gerar desejos, frustações, expectativas nem sempre reais; não correspondendo às efetivas necessidades da pessoa, em virtude do seu estado emocional momentaneamente alterado.
Embora se possa fazer uma distinção entre sentimento e emoção, pode-se reconhecer a profunda conexão existente entre ambos. O sentimento corresponde à percepção íntima de cada um, ligada às emoções anteriores, que permanecem na memória individual, como uma espécie de registro da personalidade. A emoção, por sua vez, é uma reação íntima, que implica em maior ou menor abalo interior (comoção) de acordo com os sentimentos e lembranças preexistentes. A emoção pressupõe um “movimento” do espírito humano (subjetivo), como resposta aos sentimentos que desperta. Seus graus de intensidade podem provocar até mesmo “febre” (adoecimento); turbação momentânea (perda de consciência), desmaios (como é comum em adolescentes diante de seus “ídolos”); choro ou atos de violência, como exemplos.
Por outro lado, a Razão é que confere o crivo necessário à triagem das emoções, permitindo distinguir, de acordo com as circunstâncias, a intensidade, a natureza, a proporcionalidade e a(s) resposta(s) adequada(s) à situação, independente dos sentimentos e emoções evocados:
Nenhuma emoção é, em si mesma, um julgamento; neste sentido todas as emoções e sentimentos são alógicos. Mas eles podem ser razoáveis ou irrazoáveis na medida em que se conformam à Razão ou não conseguem conformar-se. O coração nunca toma o lugar da cabeça, mas ele pode, e deve, obedecer-lhe.iii
Deste modo, a razoabilidade ou irrazoabilidade estão sempre relacionadas com algum sentimento, emoção, coisa ou bem, material ou imaterial. Sua separação se dá pela comparação com o mundo conhecido, podendo ser desenvolvidas ou ignoradas, ou, vale dizer, moldadas, pelo que se pode identificar como “domínio próprio”, exercido pela Razão sobre as ações, emoções e sentimentos, face às pessoas e circunstâncias presentes, passadas e futuras.
O “domínio próprio” representa o controle avaliativo individual, que pode (e deve) servir de limite às condutas interpessoais (valores e desvalores) e moldar o agir da pessoa, estabelecendo freios às emoções.
A razoabilidade ou irrazoabilidade dependem da hierarquia e do grau de validade dos critérios atribuídos pelo indivíduo às suas ações e omissões à luz da Razão. Conforme as opões feitas poderá prevalecer o lado animal ou o racional, auxiliadas tais escolhas, por sua vez, por outros parâmetros que formam a personalidade de cada um, propiciando a eleição pela virtude (prática do bem) ou pelo vício (desvio moral, inclinação para o mal). Neste sentido, afirma C.S Lewis: “Sem a ajuda das emoções treinadas, o intelecto permanece impotente diante do organismo animal”.iv
Ao lado dos sentimentos e emoções exerce forte influência nas decisões individuais o instinto, que se dá inconscientemente, como a preservação de si mesmo (autodefesa) ou de outrem (maternidade/paternidade) etc.
Embora palidamente descritas, as cores do cenário em que se processam as investidas do neuromarketing e suas influências são fortes e reais, atuando sobre as emoções e sentimentos dos consumidores, valendo-se dos mais diferentes meios e técnicas existentes, como a força da memória.
2 MEMÓRIA: A FORÇA DOS REGISTROS E SUA EVOCAÇÃO
A memória se apresenta como uma faculdade complexa do cérebro humano de guardar (preservar) estados de consciência passados, em que fatos, circunstâncias, pessoas, objetos, lugares e, sobretudo, sentimentos e emoções, ficam armazenados indeterminadamente. Por tal motivo, desempenha papel importante no resgate de experiências anteriores vivenciadas, que podem ser trazidas à tona pela sua evocação. Reminiscências recuperadas provocam diferentes reações, servindo o repertório de recordações como material indispensável ao exame da Razão, diante da mesma experiência ou em situações assemelhadas, conforme Augusto Cury:
A memória é a caixa de segredos da personalidade. Tudo o que somos, o mundo dos pensamentos e o universo de nossas emoções são produzidos a partir dela.v
Os registros da memória são involuntários e a sua qualidade depende da intensidade emocional experimentada.vi Gerenciar os pensamentos pode redirecionar as emoções e modificar a carga emocional negativa acumulada, superando-a. A memória não reproduz fielmente o passado, mas o reconstrói, de modo que as lembranças afloram e reconstroem a experiência original, com novas cores.vii
Deste modo, qualidade, intensidade, reconstrução e gerenciamento das emoções podem influenciar os registros da memória.
Os recursos da memória para registro de seus arquivos são muitos, podendo-se falar em memória auditiva, visual, gustativa, sensorial, afetiva etc, conforme as situações envolvidas e as habilidades individuais conscientes ou reações instintivas.
A memória humana é marcadamente influenciada por eventos atuais, que ao substituírem antigas por novas experiências perdem a pureza original dos registros da época em que ocorreram. Diante das mesmas situações as lembranças podem aflorar com novos matizes, sendo que eventuais aspectos esquecidos são “preenchidos” com ideias, circunstâncias, fatos etc, que lhe conferem sentido, porém, não correspondem ao ocorrido:
A memória é terreno onde é cultivada a educação. Mas será que a ciência desvendou os principais papéis da memória? Pouco! Muitas áreas permanecem desconhecidas. Milhões de professores no mundo estão usando a memória inadequadamente. Por exemplo, existe lembrança? Muitos professores e psicólogos juram que sim. Mas não há lembrança pura (grifou-se).viii
A memória tende a ser seletiva, no sentido de que elege determinadas lembranças, dando-lhes contornos mais “confortáveis”, por exemplo, tendenciosos ou divergentes dos eventos originais, em que o indivíduo procura ser o protagonista, vale dizer, encontrar razões para ter agido (reagido) como o fez (ou faz). Verifica-se, no entanto, que as adaptações dos registros originais não ocorrem, apenas, com os indivíduos, mas com os grupos sociais, como é o caso das lendas. Nas lendas as recordações são de tal forma modificadas que se tornam distantes ou até mesmo totalmente diferentes da facticidade original; favorecendo ou acentuando nas narrativas aspectos positivos e modificando os desfavoráveis.
Desta forma, contribuem para preencher os vazios da memória diferentes recursos, como tabus, medos, preconceitos, instintos, mágoas, alegrias, prazeres, expectativas etc. Referidos meios utilizados refletem o indivíduo e os grupos, suas inclinações, caráter, valores e, até mesmo, deliberadas distorções.
Como se verificou singelamente neste texto, os meandros da memória são ainda muito desconhecidos, porque sua análise implica em aprofundamentos no mais íntimo do ser humano, em sua personalidade e nos enigmas ainda inexplorados que a envolvem.
3 ESTÍMULO ABUSIVO AO CONSUMO
As emoções, sentimentos e memória são importantes instrumentos no despertamento do interesse dos consumidores, no entanto, quando manipulados, são considerados pelo Código do Consumidor como “práticas abusivas”, como se evidencia no art. 39, IV: “[...] prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços.ix
A abusividade no caso das diferenças etárias, como ocorre com adolescentes, crianças e idosos, é de fácil constatação, pelas mais diversas razões, dentre as quais a imaturidade, a inexperiência ou a ignorância, como dispõe, a propósito, o art. 37, §2º:
É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança [...].x
Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente possui expressa proibição da venda de produtos e da prestação de serviços considerados nocivos ou prejudiciais ao bem-estar, saúde e segurança da pessoa em desenvolvimento (art. 81).xi
A nocividade abrange aspectos de variadas naturezas, considerando-se, sempre, consoante o art. 4º, do Estatuto, a absoluta prioridade e a condição peculiar em que se encontram a criança e o adolescente à luz da Lei.xii
A indução, o engano ou o incentivo à aquisição de produtos e serviços se dão pela má-fé dos fornecedores e pela desatenção ou ignorância dos consumidores. Movidos pelas suas emoções e desejos mais íntimos, ou mesmo devido a transtornos psíquicos eventuais ou permanentes, podem ser induzidos a “[...] se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança” (art. 37 §2º).xiii
No caso dos idosos, o enfraquecimento dos sentidos pode dificultar a percepção do embuste ou abusividade da publicidade, deixando-se influenciar pela vulnerabilidade da visão, olfato, audição, tato ou paladar quanto a aspectos da “[...] natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços” (art. 37 § 1º).xiv
O legislador brasileiro identificou como enganosa “[...] qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário”; que contenha falsidade parcial, ainda que devido a omissão, que possa “induzir a erro o consumidor” ou “[...] quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço” (art. 37§1º).xv
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de fácil compreensão que ao lado das cautelas comuns no momento da contratação de qualquer produto ou serviço e das exigências que devem cercar a informação, que o combate à publicidade abusiva não pode ser vinculado somente no controle dos órgãos públicos ou nos princípios legais existentes. Demanda-se, na verdade, que haja uma contínua educação para o consumo, conforme prevê o art. 6º, II do Código, como direito básico do consumidor, para que a sociedade e os indivíduos se precavenham quanto às armadilhas de suas emoções no ato de adquirir produtos e serviços.
De fato, a ignorância dos próprios sentimentos, lembranças e emoções e do modo como influenciam o consumo em uma sociedade de risco e hiperconsumo, pode gerar endividamento, a bancarrota e até mesmo o suicídio em casos mais graves de descontrole emocional; como se divulga com relativa frequência na mídia e nas redes sociais.
* Maria da Glória Colucci: Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODM). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1º lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3º lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1º lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético.
Maria da Glória Colucci.i
1 INTRODUÇÃO
Ao discorrer sobre emoção e razão, C.S Lewis, relacionando-as com diferentes situações enfrentas no cotidiano, assinala as dificuldades (e conflitos interiores) existentes na distinção entre o que é efetivamente dotado de “valor” (significado em si) e os sentimentos (emoções), que atribuem tal “valor” (ou desvalor) ao objeto “valorado”.ii
Emoções de admiração e prazer; de medo e dor; amor e ódio; alegria e tristeza, dentre outras, podem (e efetivamente assim ocorre) deturpar a racionalidade crítica necessária às circunstâncias, aos sentimentos próprios ou alheios envolvidos; aos bens materiais ou imateriais apreciados. Neste viés, anúncios, avisos, comunicados, imagens (propositalmente ou não) podem gerar desejos, frustações, expectativas nem sempre reais; não correspondendo às efetivas necessidades da pessoa, em virtude do seu estado emocional momentaneamente alterado.
Embora se possa fazer uma distinção entre sentimento e emoção, pode-se reconhecer a profunda conexão existente entre ambos. O sentimento corresponde à percepção íntima de cada um, ligada às emoções anteriores, que permanecem na memória individual, como uma espécie de registro da personalidade. A emoção, por sua vez, é uma reação íntima, que implica em maior ou menor abalo interior (comoção) de acordo com os sentimentos e lembranças preexistentes. A emoção pressupõe um “movimento” do espírito humano (subjetivo), como resposta aos sentimentos que desperta. Seus graus de intensidade podem provocar até mesmo “febre” (adoecimento); turbação momentânea (perda de consciência), desmaios (como é comum em adolescentes diante de seus “ídolos”); choro ou atos de violência, como exemplos.
Por outro lado, a Razão é que confere o crivo necessário à triagem das emoções, permitindo distinguir, de acordo com as circunstâncias, a intensidade, a natureza, a proporcionalidade e a(s) resposta(s) adequada(s) à situação, independente dos sentimentos e emoções evocados:
Nenhuma emoção é, em si mesma, um julgamento; neste sentido todas as emoções e sentimentos são alógicos. Mas eles podem ser razoáveis ou irrazoáveis na medida em que se conformam à Razão ou não conseguem conformar-se. O coração nunca toma o lugar da cabeça, mas ele pode, e deve, obedecer-lhe.iii
Deste modo, a razoabilidade ou irrazoabilidade estão sempre relacionadas com algum sentimento, emoção, coisa ou bem, material ou imaterial. Sua separação se dá pela comparação com o mundo conhecido, podendo ser desenvolvidas ou ignoradas, ou, vale dizer, moldadas, pelo que se pode identificar como “domínio próprio”, exercido pela Razão sobre as ações, emoções e sentimentos, face às pessoas e circunstâncias presentes, passadas e futuras.
O “domínio próprio” representa o controle avaliativo individual, que pode (e deve) servir de limite às condutas interpessoais (valores e desvalores) e moldar o agir da pessoa, estabelecendo freios às emoções.
A razoabilidade ou irrazoabilidade dependem da hierarquia e do grau de validade dos critérios atribuídos pelo indivíduo às suas ações e omissões à luz da Razão. Conforme as opões feitas poderá prevalecer o lado animal ou o racional, auxiliadas tais escolhas, por sua vez, por outros parâmetros que formam a personalidade de cada um, propiciando a eleição pela virtude (prática do bem) ou pelo vício (desvio moral, inclinação para o mal). Neste sentido, afirma C.S Lewis: “Sem a ajuda das emoções treinadas, o intelecto permanece impotente diante do organismo animal”.iv
Ao lado dos sentimentos e emoções exerce forte influência nas decisões individuais o instinto, que se dá inconscientemente, como a preservação de si mesmo (autodefesa) ou de outrem (maternidade/paternidade) etc.
Embora palidamente descritas, as cores do cenário em que se processam as investidas do neuromarketing e suas influências são fortes e reais, atuando sobre as emoções e sentimentos dos consumidores, valendo-se dos mais diferentes meios e técnicas existentes, como a força da memória.
Foto e Arte de Isabel Furini |
2 MEMÓRIA: A FORÇA DOS REGISTROS E SUA EVOCAÇÃO
A memória se apresenta como uma faculdade complexa do cérebro humano de guardar (preservar) estados de consciência passados, em que fatos, circunstâncias, pessoas, objetos, lugares e, sobretudo, sentimentos e emoções, ficam armazenados indeterminadamente. Por tal motivo, desempenha papel importante no resgate de experiências anteriores vivenciadas, que podem ser trazidas à tona pela sua evocação. Reminiscências recuperadas provocam diferentes reações, servindo o repertório de recordações como material indispensável ao exame da Razão, diante da mesma experiência ou em situações assemelhadas, conforme Augusto Cury:
A memória é a caixa de segredos da personalidade. Tudo o que somos, o mundo dos pensamentos e o universo de nossas emoções são produzidos a partir dela.v
Os registros da memória são involuntários e a sua qualidade depende da intensidade emocional experimentada.vi Gerenciar os pensamentos pode redirecionar as emoções e modificar a carga emocional negativa acumulada, superando-a. A memória não reproduz fielmente o passado, mas o reconstrói, de modo que as lembranças afloram e reconstroem a experiência original, com novas cores.vii
Deste modo, qualidade, intensidade, reconstrução e gerenciamento das emoções podem influenciar os registros da memória.
Os recursos da memória para registro de seus arquivos são muitos, podendo-se falar em memória auditiva, visual, gustativa, sensorial, afetiva etc, conforme as situações envolvidas e as habilidades individuais conscientes ou reações instintivas.
A memória humana é marcadamente influenciada por eventos atuais, que ao substituírem antigas por novas experiências perdem a pureza original dos registros da época em que ocorreram. Diante das mesmas situações as lembranças podem aflorar com novos matizes, sendo que eventuais aspectos esquecidos são “preenchidos” com ideias, circunstâncias, fatos etc, que lhe conferem sentido, porém, não correspondem ao ocorrido:
A memória é terreno onde é cultivada a educação. Mas será que a ciência desvendou os principais papéis da memória? Pouco! Muitas áreas permanecem desconhecidas. Milhões de professores no mundo estão usando a memória inadequadamente. Por exemplo, existe lembrança? Muitos professores e psicólogos juram que sim. Mas não há lembrança pura (grifou-se).viii
A memória tende a ser seletiva, no sentido de que elege determinadas lembranças, dando-lhes contornos mais “confortáveis”, por exemplo, tendenciosos ou divergentes dos eventos originais, em que o indivíduo procura ser o protagonista, vale dizer, encontrar razões para ter agido (reagido) como o fez (ou faz). Verifica-se, no entanto, que as adaptações dos registros originais não ocorrem, apenas, com os indivíduos, mas com os grupos sociais, como é o caso das lendas. Nas lendas as recordações são de tal forma modificadas que se tornam distantes ou até mesmo totalmente diferentes da facticidade original; favorecendo ou acentuando nas narrativas aspectos positivos e modificando os desfavoráveis.
Desta forma, contribuem para preencher os vazios da memória diferentes recursos, como tabus, medos, preconceitos, instintos, mágoas, alegrias, prazeres, expectativas etc. Referidos meios utilizados refletem o indivíduo e os grupos, suas inclinações, caráter, valores e, até mesmo, deliberadas distorções.
Como se verificou singelamente neste texto, os meandros da memória são ainda muito desconhecidos, porque sua análise implica em aprofundamentos no mais íntimo do ser humano, em sua personalidade e nos enigmas ainda inexplorados que a envolvem.
Foto e Arte de Isabel Furini |
As emoções, sentimentos e memória são importantes instrumentos no despertamento do interesse dos consumidores, no entanto, quando manipulados, são considerados pelo Código do Consumidor como “práticas abusivas”, como se evidencia no art. 39, IV: “[...] prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços.ix
A abusividade no caso das diferenças etárias, como ocorre com adolescentes, crianças e idosos, é de fácil constatação, pelas mais diversas razões, dentre as quais a imaturidade, a inexperiência ou a ignorância, como dispõe, a propósito, o art. 37, §2º:
É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança [...].x
Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente possui expressa proibição da venda de produtos e da prestação de serviços considerados nocivos ou prejudiciais ao bem-estar, saúde e segurança da pessoa em desenvolvimento (art. 81).xi
A nocividade abrange aspectos de variadas naturezas, considerando-se, sempre, consoante o art. 4º, do Estatuto, a absoluta prioridade e a condição peculiar em que se encontram a criança e o adolescente à luz da Lei.xii
A indução, o engano ou o incentivo à aquisição de produtos e serviços se dão pela má-fé dos fornecedores e pela desatenção ou ignorância dos consumidores. Movidos pelas suas emoções e desejos mais íntimos, ou mesmo devido a transtornos psíquicos eventuais ou permanentes, podem ser induzidos a “[...] se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança” (art. 37 §2º).xiii
No caso dos idosos, o enfraquecimento dos sentidos pode dificultar a percepção do embuste ou abusividade da publicidade, deixando-se influenciar pela vulnerabilidade da visão, olfato, audição, tato ou paladar quanto a aspectos da “[...] natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços” (art. 37 § 1º).xiv
O legislador brasileiro identificou como enganosa “[...] qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário”; que contenha falsidade parcial, ainda que devido a omissão, que possa “induzir a erro o consumidor” ou “[...] quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço” (art. 37§1º).xv
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de fácil compreensão que ao lado das cautelas comuns no momento da contratação de qualquer produto ou serviço e das exigências que devem cercar a informação, que o combate à publicidade abusiva não pode ser vinculado somente no controle dos órgãos públicos ou nos princípios legais existentes. Demanda-se, na verdade, que haja uma contínua educação para o consumo, conforme prevê o art. 6º, II do Código, como direito básico do consumidor, para que a sociedade e os indivíduos se precavenham quanto às armadilhas de suas emoções no ato de adquirir produtos e serviços.
De fato, a ignorância dos próprios sentimentos, lembranças e emoções e do modo como influenciam o consumo em uma sociedade de risco e hiperconsumo, pode gerar endividamento, a bancarrota e até mesmo o suicídio em casos mais graves de descontrole emocional; como se divulga com relativa frequência na mídia e nas redes sociais.
* Maria da Glória Colucci: Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODM). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1º lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3º lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1º lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético.
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