PASSEIO PRA PASÁRGADA
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É no galope do bondinho que a gente vai, seu motorneiro toca esse bonde, seu sanfoneiro afufe o fole, isso é bom demais
Eu to pensando numa música do passado que a gente dançava com as mocinhas da cidade
Felicidade foi-se embora
Que saudade do passado quando havia paz
Já não aguento mais aqui parado, leio um livro emprestado de mil páginas, tomo um porre, durmo um sono, como um sonho, esse frio medonho, as quatro estações numa só, esse bonde pé de bode, como pode aqui parado.
É na poltrona do bondinho que a gente vai longe
Afufe o fole, ó ceguinho da sanfona, rasgue que é mole
Motorneiro, mão no timão, põe esse vagão nos trilhos, toque esse trem pra Pasárgada, ponto final Paraíso.
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Se essa rua fosse só minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de petit pavet branquinhas, e de quebra, pavimentaria com paralelepípedos de ouro as calçadas pras mocinhas da cidade passar.
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Sombra, que vergonha, não brinque, sou tímida pára com esses memes miméticos, não passe a mão, nada de mão dada, cuidado, sou casada, piá
Menina, dá-me um chamego
Chameguinho, engraçadinho, por favor, não sou ciumento, me revida com um beijinho
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Ah! Quão bela é a aurora na Serra do Mar, o sol a pino na Rua das Flores, o Arrebol nas Mercês viajando pra Santa Felicidade.
Escultura Boca Maldita, em Curitiba - Arte Digital de Carlos Zemek |
Saudades dos cavalheiros de triste figura da Boca Maldita
– Cadê você, Esmaga, Gilda, Bataclã, poeta Liberalino, Maria do Cavaquinho?
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E veio a neve, eu tava lá esculpindo bonequinhos de algodão, soprando bolinhas de sabão, tocando cavaquinho com o sanfoneiro ceguinho
Meu deus que frio medonho.
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Guria, já to velho para te e-namorar
Fico pra Galo de São Roque, não vou mais casar
Não fique pra Galinha de Santa Giustina que Balzac vai te protagonizar
Se você quiser, tenho juízo, te levo ao Paraíso
Vamos fugir, trepa no bonde, seja bem-vinda na poltrona do bondinho, vamos pra Pasárgada passear.
José Aparecido Fiori
Curitiba, 28/06/17
EU FALO COM DEUS
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O cérebro enrugado de Dom Quixote secou de tanto ler, o corpo mutilado, as mãos de calo, não é mais o mesmo cavaleiro de triste figura de Cervantes
Os dias contínuos, as noites sem fim, as estrelas piscam pra mim
O lusco-fusco dos pirilampos, os passarinhos se agasalhando nos ninhos de ovinhos, o beija-flor peralta beijando as feridas da minha dor
Adeus cursos, concursos, percursos, surtos de amor, ilusões, amores de perdição.
Arte digital de Isabel Furini |
Hoje estreio meu terno de formatura, visto o funeral da mortalha, as flores já perfumam o velório, segue o séquito pelas ruas desnudas
Volto ao primitivo barro endurecido, o rochedo em pó quebradiço
Ouça o racho do estalido, sinta o vômito da ressaca do rio Belém, o riso dos sapos no chaco, os seixos se escondendo no escolho de pedregulhos.
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As nuvens obnubilam o sol em solstício de inverno
O vento uiva um funéreo gemido no morro, as aves cantam em coral sustenido ao gemido do arvoredo comovido, os animais ruminam felizes as verdes pastagens, o pastor amoroso dá a vida por suas ovelhas
Deus olha Adão e Eva nus fazendo amor no paraíso
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Deus é Tudo, conTudo surdo-mudo, não fala, se cala, quando o clamo, tartamudo
Não o vejo na rua em que ando, os bares em que bebo, eu, na iniquidade, Ele na ubiquidade
Tá bom, mesmo assim, cumprimentam-me o sol com seus raios e a noite enluarada de estrelas coruscantes
Sei que piro, mas Deus fala comigo pela Estrela de Davi, por analogias e metáforas, simbologias, semânticas e analogias, tanto que liga para o número do meu celular, espia-me dentro do elevador, vigia-me na volúpia quando devoro com os olhos o corpo inteiro da mulher nua que a terra come, que os vermes cospem
Fala comigo ébrio no ápice do ágape, no prazer orgástico do ato sexual como o Escondido dentro da caixa de papelão ao relento frio, no meio fio das calçadas de pedras removidas, pelas vias anti-pó macadamizadas, pelos moradores de rua que pernoitam sob as marquises estorvando o transeunte nos terminais rodoviários
Fala comigo nos pontos de tráfico, no trânsito estrangulado, com os mendigos desmilinguidos, os mangueadores fingidos, os lúmpens esgualepados do Guadalupe, os esfomeados fazendo suas refeições com o lixo dos sacos pretos à porta dos prédios excrementados
Fala comigo através do cão perdido suplicando em uivo um pedido, eu omisso, arrependido, deixo-o morrer atrapalhando o tráfego
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Vai meu burrinho espancado, carrega o carrinho gigante de bosta reciclável, os jornais menstruados de sangue, os papéis higiênicos dos mictórios imundos, a comida azeda misturada com cacos de vidro.
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Deixa-me, agora, molhar o bico, matar o bicho, mando uns goles no peito, nunca fui de mentir, bebo sim, beber é preciso, não beber não é preciso, e quem não bebe, me diga aí
Deixa-me pernoitar na escadaria da matriz onde o padre me deixa entrar, Deixa minha boca vomitar a marvada pinga
Deixa a vida me levar.
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E então lhes digo uma coisa, escritos do próprio punho do Mar Morto a mim dirigidos, desintegrados, apocalípticos, frases em negrito, tenho certeza, os grifos são dEle, não tenho dúvida
Dialogamos em colóquios e solilóquios, nos confidenciamos há tempos, e digo, embora indigno, que os hieróglifos são tão legítimos que só poderiam mesmo ser divinos.
Entrementes, não sou desses que mentem, Dominus vobiscum
Nenhum negócio mais quero neste mundo, cansei dos combates que só aos fracos abate, enjoei dos prodígios do filho pródigo, das proezas da vitória, encerro a carreira no aquém menos curioso com a vida no além
Levo daqui boas recordações
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– Escuta aqui, infeliz rapaz, o que queres, onde vais?
(Olha só! Um amarfanhado bilhetinho manuscrito colocado debaixo do meu travesseiro, quem foi que será?)
– Não desanime, cabra macho, quando não me vê em lugar algum, não me acha, então me procure em outro lugar, vai procurar sem parar, estou parado te esperando chegar
Faça frio, calor, fico a tua espera, basta perceber que estou em todo lugar
Estou no topo da colina, no cume do espigão, no cimo do pináculo do templo, na depressão do profundo vale, na solidão no fundo do poço
– Acha que não gosto de você? Deixa prá lá, falamos de amor
Ama e entenderás por quê
Faça assim: exercite-se em pequenos atos humildes e singelos, ama primeiro as pedras, as plantas, os animais, depois ame a multidão, as coisas grandes
O que você semeia, você colhe
As flores não têm consciência, mas compreendem se você as ama ou não
Se você amar uma rosa, tente amá-la de verdade, mesmo que não te apetece, para que ela possa exalar seu amor
Faça o mesmo com as demais flores, elas viverão ou morrerão sem os humores
Ama as rochas, o som do mar, os ecos do arvoredo, o tênue ruído da folha que desce à relva
Vá à praia, dê um mergulho, borrife-se nas ondas, vá aos botecos, o Stuart, o Maneko, o Mercamunicipal, o bar do Galo, você que sabe dos bares, tome uma caipirinha, um chope, um vinho
Beba por mim, coma por mim
A vida é breve, rapaz
Brindamos com bom vinho tinto, claro, este é o nosso sangue
Beija o vento, abraça o ar, assobia um canto na noite escura, durma e sonha e bons sonhos, acorde, coração ao alto, faça um poema quando o sol se levantar
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Pronto, já está preparado, respira fundo, corta o todo mal desde mundo
Estamos alados, a tua asa esquerda é a minha asa direita, o meu Espírito é irmão do teu espírito, somos almas gêmeas, cara
Os átomos do universo eletrizam nossos corpos em Um Todo Único
Partimos e comemos o pão, somos todos farinha do mesmo saco
Do pó viemos, a ele retornamos
Amém.
José Aparecido Fiori
Curitiba, 28/06/17
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