Rosa Maria Mano: Tirana - e outras poesias

Edição de Isabel Furini


O SEGREDO DE DEUS
Lenine tem razão.
A vida é tão rara...

E nos atira no meio de um giro que nunca termina,
um pouco mais de esgarçar a alma,
um muito de tudo cozinhando a fala,
o gozo e o pavor da condição humana.
E remenda a carne que já foi inteira.
A vida sabe ser nojo, crueza com a dor da gente.
Fácil desistir dela... que tem mordedura fera.
Que escarra a sua ferida e gela no fundo do rio.
Fácil a paixão por ela. No bico do beija-flor,
na desmedida mistura
que ela faz de sangue e bruma.
No que edifica na espuma, nas escarchas espinhosas,
nos lagos que bebem lua.

Eu quero ser um girassol mutante.
Um caminho azul para mim mesma.
Ter mais que solidão, filhos e sonhos.
Beber da vida o que não é visível.
Quero o segredo de Deus.
Sua garganta. E seu banquete
de vidros sobre a mesa.

Rosa Maria Mano



Arte digital de Isabel Furini


UM CHAPÉU PARA USAR À NOITE

Sobre a cabeça uma estrela negra, vinda do norte.
Um barco bordado em filigranas de tom escarlate,
pela primeira vez rasgando meus olhos.

Estarei nas cheias de marés e luas,
na boca do mar, que sorve terras cruentas
e empapa a areia com língua áspera
agressiva, nua e verde.
Uma poeta, pela primeira vez
no mundo dos homens.

A lua aponta um bico para o sol.
Outro para o nada.
Uso meu chapéu de estrelas aportadas
num negrume que espanta gárgulas
e atinge em cheio o coração da rosa.
Estamos vivos – eu e meu chapéu noturno,
pela primeira vez de volta à terra.

Rosa Maria Mano



ANÔNIMA

Anônima água e sem mistério.
O cheiro dela infernizando a sala.
Solta e indomável.
Não sei onde começa, porque verte em tudo.
É uma liga entre mim e o visgo
que a noite planta sobre os arvoredos,
carregando coisas antigas.
Meu nariz, os cordames do violão partido ao meio,
o quebra nozes que não dancei.
Leva meus sapatos, os frutos
que apodreciam na cesta.
Leva meus olhos que não sabem
o endereço da lágrima.
Pra onde ir quando ela vira torvelinho?
Passa por meus ombros, pelos pães
acabados de cozer na pedra ao largo da estrada.
Leva o trigo, o gosto, o ouro do sol.
Passa por minhas pernas, pelas algas
adormecidas entre cerejas e conchas.
Leva o gozo, íntimos laços, mistura os líquidos.
Anônima água engole uma lua inteira.
Quebra meu braço, preenche o ventre cego.
Desliza em mim, peixe afogado.

Rosa Maria Mano




TIRANA

Danço pra te seduzir.
Uma dança sagrada, pagã. Dança tirana.
Sem véus. A lua sobre os ombros, o passo em roda,
uma longa dança.
Quem sabe, da terra suba um odor que te envolva?
Quem sabe, da chuva um outro que perfume?
Quem sabe das pernas, numa outra lua,
vestida da antiga força que move marés,
nasça um beijo doido?
Aluado de muito, que abduza a alma, adorno da boca,
tonsura da língua, inversão dos olhos.
E baile, em roda, no céu da boca.
E fuja pras coxas pra cravar os dentes,
mesquinho e líquido a te olhar de frente.

Rosa Maria Mano




Rosa Maria Mano publicou seu primeiro livro, em São Paulo, a coletânea de poemas  Fruto Mulher. Em 1983,  Xamã, primeiro livro de poesias, individual. Com capa de ElifasAndreato e prefácio de Antonio Houaiss. Participou da coleção Passe Livre, da Cia. Ed. Nacional, com  Três Marias e um Cometa. Desta coleção participaram Pedro Bloch, Helena Silveira, Josué Guimarães, Fausto Wolff, Moacir Scliar, entre outros. Também: O Gato, Conto , 1998, D.O. Leitura, São Paulo; Coletânea Prêmio SESC de Poesia, 2000, SESC, Rio de Janeiro; 2015, eBookAmazon/Kindle; Manuscritos de Areia, 2017, pela Coleção Marianas, Ed. Marianas Edições/Bolsa Livro, Curitiba. Premiada no Concurso de Poesia do SESC, Rio de Janeiro, 1999, primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, Rio de Janeiro.  Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016. Esses poemas pertencem a Lábios-Mariposa  a ser lançado esse ano pela Editora Singularidade.

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