SUICÍDIO E INVIOLABILIDADE DA VIDA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Maria da Glória Colucci 1
1 INTRODUÇÃO
Causas diversas são apontadas para o suicídio, todavia, nenhuma pode justificá-lo, embora conduzam à possível compreensão de sua crescente incidência. Tanto jovens, quanto adultos e idosos, e mesmo crianças (até 12 anos), cometem suicídio, ato extremo e descabido de ceifar a própria vida.
A Neurociência identifica dentre as causas mais frequentes do suicídio a depressão, associada a uma sequência de acontecimentos desagradáveis, que aumentam a sensação de “beco sem saída”, de “infelicidade extrema”, associadas a fatores fisiológicos e às circunstâncias ambientais (familiares e laborais, por exemplo), influências culturais (rede sociais, grupos de amigos) ou mesmo de origem genética.
Possíveis diferenças anatômicas e químicas do cérebro dos suicidas, quando comparados à maioria dos cérebros humanos, segundo Carol Ezzell, demonstram a presença de graves alterações que podem ser responsáveis pelo ato desesperado de tirar a própria vida. 2
Sem dúvida, exerce papel de destaque no ato suicida a depressão, que se denominava, anteriormente, de “melancolia”, cantada em versos e na literatura clássica, ligada a decepções amorosas, morte de ente querido ou abandono; acompanhada de palidez profunda, desmaios e autoquíria.
Gary R. Collins procura levantar algumas causas frequentes e comuns, que podem servir de alerta aos mais próximos e sinalizam a necessidade de acompanhamento médico, psiquiátrico ou aconselhamento psicológico. 3
Precedendo, em muitos casos o suicídio, a depressão merece (pelos menos deve merecer) atenção especial dos parentes, dos profissionais de saúde; visto que sua negligência pode acelerar o processo de autodestruição e perda do sentido ético da inviolabilidade da vida, culminando com o suicídio.
O olhar jurídico e sua regulação legal o acompanham e preservam o significado ético da vida humana, valor supremo, conforme a Constituição de 1988 prevê no art. 5º, em seu caput, seguido da liberdade, igualdade, segurança e propriedade. 4
2 SUICÍDIO E DEPRESSÃO
O desequilíbrio mental decorrente da depressão, que pode ocorrer em qualquer idade, inclusive na infância, e se intensificar na velhice, está interligado a comportamentos negativos de impotência diante de fatos ou circunstâncias incontroláveis, como a morte ou abandono dos pais ou mesmo companheiro(a).
Também, a falta de sono, alimentação imprópria, uso de entorpecentes, baixa taxa de açúcar no sangue e outros componentes químicos em desequilíbrio, tumores cerebrais, doenças incuráveis (como câncer), desordem glandulares etc, conforme enumeração de Gary R. Collins, são causas físico-genéticas da depressão, que podem construir um perfil suicida. 5
Experiências na infância de carência afetiva intensa, como no caso de crianças criadas longe dos pais em instituições sociais de acolhimento, podem na adolescência e idade adulta levar ao desenvolvimento de um sentimento de menosprezo por si mesmo, de baixa autoestima, de ira contida como se fosse indigno do amor de alguém; cultivados por longo tempo sob o manto da mágoa e ressentimento contra a vida e os mais próximos. Sentimentos de vingança podem ser voltados contra os parentes, amigos, colegas de trabalho e escola, desembocando em ataques terroristas, tiroteios em eventos públicos e outros tantos atos desesperados que promovem a morte de pessoas indefesas e, por fim, a autoquíria.
A perda do emprego e crises econômicas prolongadas, como em 1929, nos Estados Unidos, causam, ainda, hoje, a morte de muitas pessoas no mundo; levando ao desespero, ao ressentimento extremo contra tudo e todos, desencadeando uma sequência de atos violentos e destrutivos, culminando com o ódio contra si mesmo e a autopunição sob a forma de suicídio.
A sensação de exclusão socioeconômica, de falta de acesso a bens e serviços, opções sexuais e outros tantos fatores exógenos podem ser temporários; e até mesmo, comuns na adolescência; servindo, se bem conduzidos, de alavancas para o sucesso profissional e equilíbrio lógico do ser humano em desenvolvimento (art. 7º Estatuto da Criança e do Adolescente). 6
No entanto, a medicalização da saúde, assim entendida como a presunção fartamente divulgada pelos meios de comunicação de remédios para todos os males, tem contribuído para mascarar os graves sintomas da depressão, impedindo o tratamento adequado da doença, que pode levar ao suicídio.
Não apenas a mídia, mas a mudança na forma de pensar os distúrbios biopsíquicos mudou significativamente, havendo uma tendência generalizada de se alcançar a “felicidade” a qualquer preço:
O objetivo não é mais curar os males e sim encontrar a melhor e mais econômica maneira de administrar o mal-estar. O espantoso é que, assim, o sintoma deixa de funcionar como elemento deflagrador de questionamentos e se converte no substrato, no alimento desta subvida em sociedade. 7
E acrescenta Maria Sílvia Bolguese, psicanalista e professora, que a distorção e mau uso dos medicamentos se apresenta na sociedade de consumo e bem-estar como um comportamento coletivo desviante:
Pode-se afirmar até mesmo que a exacerbação do uso da medicação como saída para o sofrimento psíquico reflete a mesma lógica presente na expansão do narcotráfico mundial. Como assinala o psicanalista Joel Birman, o mercado das drogas ilegais encontra possibilidades na ética da mesma sociedade, que recorre aos medicamentos psicotrópicos de maneira cindida e distanciada dos mais genuínos apelos subjetivos. 8
Conselhos motivacionais, apoio familiar, alimentação adequada, terapia ocupacional etc, são importantes para alavancar o paciente depressivo, se associados à ministração de medicamentos; porém, isoladamente, não promovem o equilíbrio e superam a apatia, desinteresse e tendências suicidas.
3 INVIOLABILIDADE DA VIDA E SUICÍDIO NO DIREITO
O direito à vida é o substrato de todos os direitos fundamentais, admitidas raras exceções, como a pena de morte e o aborto, cujos alicerces se encontram, no primeiro caso, no direito coletivo de preservação da vida e, no segundo, na proteção da vida e saúde da gestante. Todavia, as cautelas e restrições legais à pena de morte e ao aborto acentuam a natureza excepcional da quebra da inviolabilidade da vida (art. 5º, CF). 9
O suicídio de longa data ocupa o interesse dos doutrinadores, em particular dos penalistas, observando-se, por exemplo, que Beccaria (1738-1794), em sua famosa obra, Dos Delitos e das Penas (1764), ressalta que o suicídio é “[...] um crime que parece não poder estar submetido a qualquer tipo de pena; pois esse castigo recairia apenas sobre um corpo sem sensibilidade, ou sobre pessoas inocentes”. 10
Os reflexos sociais, sobretudo em um país cristão ou religioso, vão além do ato desesperado do suicida, recaindo sobre sua família e amigos, causando intenso sofrimento e dúvidas aflitivas que se perpetuam ao longo da vida, em particular, dos mais chegados (mãe, pai, irmãos, filhos, companheiros).
Cesare Beccaria, consoante a percepção do século XVIII, que não difere muito da atual, devido ao fato do suicídio ofender princípios religiosos e revelar vulnerabilidades sociais, afirmava que:
Trata-se de um delito que Deus castiga depois da morte do culpado, e apenas Deus pode castigar após a morte. Não é, entretanto, um delito perante os homens, pois o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado. 11
Na atualidade, o Direito Penal brasileiro segue a tipificação de três condutas diferentes que contribuem para a consumação do ato suicida, previstas na lei como indução, instigação e auxílio. Pode dar-se por ação a participação de terceiros ou por omissão, conforme Julio Fabbrini Mirabete elucida:
São três as condutas inscritas no tipo, que descreve crime de ação múltipla ou comportamento variado. A primeira delas é de induzir, que traduz a iniciativa do agente, criando na mente da vítima o desejo de suicídio. A instigação, nesse tipo penal, traduz o comportamento de quem reforça, estimula, acoroçoa, de forma idônea, a ideia preexistente do suicídio. Por fim, pode ser cometido o crime pelo auxilío dado ao suicida. 12
As redes sociais têm, infelizmente, induzido, instigado e até auxiliado a prática do suicídio, mediante jogos, como o já conhecido “Baleia Azul”. 13
A eutanásia tem sido para muitos apontada como um comportamento que se inclui dentre as modalidades de homicídio, ou mesmo uma espécie de suicídio assistido, praticada no caso dos doentes incuráveis ou terminais. A sociedade brasileira a repudia devido às tradições religiosas judaico-cristãs que são professadas no País.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O suicídio tem se tornado um problema de saúde pública, de natureza mental, acentuado pelo consumo de drogas, abandono de familiares, desemprego, exclusão social etc, que as políticas governamentais ainda não conseguem enfrentar com a devida urgência.
Uma convenção profissional extraoficial, espécie de acordo seguido pelos manuais de redação dos grandes jornais, veda a divulgação do suicídio, em respeito à família e à vítima 14. Ademais, a divulgação, eventualmente, pode estimular atos desesperados de outros indivíduos abalados pela notícia e com tendências suicidas.
Dificuldades psicossociais somadas a fatores biológicos, fadiga ou perda de energia, pensamentos de morte recorrentes, dentre outros, devem despertar a atenção clínica para um quadro depressivo, conforme o Manual Diagnóstico e Estatísticos para os Profissionais de Saúde Mental alertando para tendências suicidas.15
Instituições filantrópicas e religiosas têm se dedicado ao atendimento individual, pelos meios disponíveis de comunicação, visando desencorajar a prática do suicídio, mediante o oferecimento de alternativas superadoras da crise emocional atravessada pelo provável suicida. 16
Por lógico, o suicídio tentado não é considerado crime, até porque a finalidade da lei penal é punir quem induza, instiga ou auxilia o suicida, pela sua participação em suicídio alheio. Portanto, a pessoa que “tenta” o suicídio não pode ser criminalmente responsabilizada, por medida de política criminal, mas amparada pela saúde pública. 17
1 Advogada. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODS). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná.
Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1o lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3o lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1o lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético. Troféu Imprensa Brasil 2017 e Top of Mind Quality Gold 2017.
2 EZZELL, Carol. A neurociência do suicídio. Viver Mente & Cérebro, disponível em www.vivermentecerebro.com.br, p.51.
3 COLLINS, Gary R. Aconselhamento cristão. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984, p.75-79.
4 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 1988, disponível em www.planalto.gov.br
5 COLLINS, Gary R. Op.cit, p.75.
6BRASIL. Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990, disponível em www.planalto.gov.br 7 BOLGUESE, Maria Silvia. Sociedade de consumo e bem-estar. Viver Mente & Cérebro, disponível em www.vivermentecerebro.com.br. 8 Id., p.62.
9BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 1988, disponível em www.planalto.gov.br
10 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus-Livraria Editora, s/data, p.79.
11 Id., p.81.
12 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999,
p. 679.
13 O que se sabe até agora sobre o jogo da “Baleia Azul”. Disponível em www.oglobo.globo.com
14 CASTRO, Arlaine. Editorial: O suicídio e a ética jornalística; disponível em www.gazetanews.com, em 17.2.2018.
15 BRASIL. Manual Diagnóstico e Estatístico para os Profissionais de Saúde Mental, disponível em www.365saude.com.br16 CVV. Centro de Valorização da Vida, disponível em www.cvv.org.br
17 BRASIL. Código Penal – Decreto-Lei n.2848, de 7 de dezembro de 1940, disponível em www.planalto.gov.br
Maria da Glória Colucci 1
1 INTRODUÇÃO
Causas diversas são apontadas para o suicídio, todavia, nenhuma pode justificá-lo, embora conduzam à possível compreensão de sua crescente incidência. Tanto jovens, quanto adultos e idosos, e mesmo crianças (até 12 anos), cometem suicídio, ato extremo e descabido de ceifar a própria vida.
A Neurociência identifica dentre as causas mais frequentes do suicídio a depressão, associada a uma sequência de acontecimentos desagradáveis, que aumentam a sensação de “beco sem saída”, de “infelicidade extrema”, associadas a fatores fisiológicos e às circunstâncias ambientais (familiares e laborais, por exemplo), influências culturais (rede sociais, grupos de amigos) ou mesmo de origem genética.
Possíveis diferenças anatômicas e químicas do cérebro dos suicidas, quando comparados à maioria dos cérebros humanos, segundo Carol Ezzell, demonstram a presença de graves alterações que podem ser responsáveis pelo ato desesperado de tirar a própria vida. 2
Sem dúvida, exerce papel de destaque no ato suicida a depressão, que se denominava, anteriormente, de “melancolia”, cantada em versos e na literatura clássica, ligada a decepções amorosas, morte de ente querido ou abandono; acompanhada de palidez profunda, desmaios e autoquíria.
Gary R. Collins procura levantar algumas causas frequentes e comuns, que podem servir de alerta aos mais próximos e sinalizam a necessidade de acompanhamento médico, psiquiátrico ou aconselhamento psicológico. 3
Precedendo, em muitos casos o suicídio, a depressão merece (pelos menos deve merecer) atenção especial dos parentes, dos profissionais de saúde; visto que sua negligência pode acelerar o processo de autodestruição e perda do sentido ético da inviolabilidade da vida, culminando com o suicídio.
O olhar jurídico e sua regulação legal o acompanham e preservam o significado ético da vida humana, valor supremo, conforme a Constituição de 1988 prevê no art. 5º, em seu caput, seguido da liberdade, igualdade, segurança e propriedade. 4
Fotografia de Isabel Furini |
O desequilíbrio mental decorrente da depressão, que pode ocorrer em qualquer idade, inclusive na infância, e se intensificar na velhice, está interligado a comportamentos negativos de impotência diante de fatos ou circunstâncias incontroláveis, como a morte ou abandono dos pais ou mesmo companheiro(a).
Também, a falta de sono, alimentação imprópria, uso de entorpecentes, baixa taxa de açúcar no sangue e outros componentes químicos em desequilíbrio, tumores cerebrais, doenças incuráveis (como câncer), desordem glandulares etc, conforme enumeração de Gary R. Collins, são causas físico-genéticas da depressão, que podem construir um perfil suicida. 5
Experiências na infância de carência afetiva intensa, como no caso de crianças criadas longe dos pais em instituições sociais de acolhimento, podem na adolescência e idade adulta levar ao desenvolvimento de um sentimento de menosprezo por si mesmo, de baixa autoestima, de ira contida como se fosse indigno do amor de alguém; cultivados por longo tempo sob o manto da mágoa e ressentimento contra a vida e os mais próximos. Sentimentos de vingança podem ser voltados contra os parentes, amigos, colegas de trabalho e escola, desembocando em ataques terroristas, tiroteios em eventos públicos e outros tantos atos desesperados que promovem a morte de pessoas indefesas e, por fim, a autoquíria.
A perda do emprego e crises econômicas prolongadas, como em 1929, nos Estados Unidos, causam, ainda, hoje, a morte de muitas pessoas no mundo; levando ao desespero, ao ressentimento extremo contra tudo e todos, desencadeando uma sequência de atos violentos e destrutivos, culminando com o ódio contra si mesmo e a autopunição sob a forma de suicídio.
A sensação de exclusão socioeconômica, de falta de acesso a bens e serviços, opções sexuais e outros tantos fatores exógenos podem ser temporários; e até mesmo, comuns na adolescência; servindo, se bem conduzidos, de alavancas para o sucesso profissional e equilíbrio lógico do ser humano em desenvolvimento (art. 7º Estatuto da Criança e do Adolescente). 6
No entanto, a medicalização da saúde, assim entendida como a presunção fartamente divulgada pelos meios de comunicação de remédios para todos os males, tem contribuído para mascarar os graves sintomas da depressão, impedindo o tratamento adequado da doença, que pode levar ao suicídio.
Não apenas a mídia, mas a mudança na forma de pensar os distúrbios biopsíquicos mudou significativamente, havendo uma tendência generalizada de se alcançar a “felicidade” a qualquer preço:
O objetivo não é mais curar os males e sim encontrar a melhor e mais econômica maneira de administrar o mal-estar. O espantoso é que, assim, o sintoma deixa de funcionar como elemento deflagrador de questionamentos e se converte no substrato, no alimento desta subvida em sociedade. 7
E acrescenta Maria Sílvia Bolguese, psicanalista e professora, que a distorção e mau uso dos medicamentos se apresenta na sociedade de consumo e bem-estar como um comportamento coletivo desviante:
Pode-se afirmar até mesmo que a exacerbação do uso da medicação como saída para o sofrimento psíquico reflete a mesma lógica presente na expansão do narcotráfico mundial. Como assinala o psicanalista Joel Birman, o mercado das drogas ilegais encontra possibilidades na ética da mesma sociedade, que recorre aos medicamentos psicotrópicos de maneira cindida e distanciada dos mais genuínos apelos subjetivos. 8
Conselhos motivacionais, apoio familiar, alimentação adequada, terapia ocupacional etc, são importantes para alavancar o paciente depressivo, se associados à ministração de medicamentos; porém, isoladamente, não promovem o equilíbrio e superam a apatia, desinteresse e tendências suicidas.
3 INVIOLABILIDADE DA VIDA E SUICÍDIO NO DIREITO
O direito à vida é o substrato de todos os direitos fundamentais, admitidas raras exceções, como a pena de morte e o aborto, cujos alicerces se encontram, no primeiro caso, no direito coletivo de preservação da vida e, no segundo, na proteção da vida e saúde da gestante. Todavia, as cautelas e restrições legais à pena de morte e ao aborto acentuam a natureza excepcional da quebra da inviolabilidade da vida (art. 5º, CF). 9
O suicídio de longa data ocupa o interesse dos doutrinadores, em particular dos penalistas, observando-se, por exemplo, que Beccaria (1738-1794), em sua famosa obra, Dos Delitos e das Penas (1764), ressalta que o suicídio é “[...] um crime que parece não poder estar submetido a qualquer tipo de pena; pois esse castigo recairia apenas sobre um corpo sem sensibilidade, ou sobre pessoas inocentes”. 10
Os reflexos sociais, sobretudo em um país cristão ou religioso, vão além do ato desesperado do suicida, recaindo sobre sua família e amigos, causando intenso sofrimento e dúvidas aflitivas que se perpetuam ao longo da vida, em particular, dos mais chegados (mãe, pai, irmãos, filhos, companheiros).
Cesare Beccaria, consoante a percepção do século XVIII, que não difere muito da atual, devido ao fato do suicídio ofender princípios religiosos e revelar vulnerabilidades sociais, afirmava que:
Trata-se de um delito que Deus castiga depois da morte do culpado, e apenas Deus pode castigar após a morte. Não é, entretanto, um delito perante os homens, pois o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado. 11
Na atualidade, o Direito Penal brasileiro segue a tipificação de três condutas diferentes que contribuem para a consumação do ato suicida, previstas na lei como indução, instigação e auxílio. Pode dar-se por ação a participação de terceiros ou por omissão, conforme Julio Fabbrini Mirabete elucida:
São três as condutas inscritas no tipo, que descreve crime de ação múltipla ou comportamento variado. A primeira delas é de induzir, que traduz a iniciativa do agente, criando na mente da vítima o desejo de suicídio. A instigação, nesse tipo penal, traduz o comportamento de quem reforça, estimula, acoroçoa, de forma idônea, a ideia preexistente do suicídio. Por fim, pode ser cometido o crime pelo auxilío dado ao suicida. 12
As redes sociais têm, infelizmente, induzido, instigado e até auxiliado a prática do suicídio, mediante jogos, como o já conhecido “Baleia Azul”. 13
A eutanásia tem sido para muitos apontada como um comportamento que se inclui dentre as modalidades de homicídio, ou mesmo uma espécie de suicídio assistido, praticada no caso dos doentes incuráveis ou terminais. A sociedade brasileira a repudia devido às tradições religiosas judaico-cristãs que são professadas no País.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O suicídio tem se tornado um problema de saúde pública, de natureza mental, acentuado pelo consumo de drogas, abandono de familiares, desemprego, exclusão social etc, que as políticas governamentais ainda não conseguem enfrentar com a devida urgência.
Uma convenção profissional extraoficial, espécie de acordo seguido pelos manuais de redação dos grandes jornais, veda a divulgação do suicídio, em respeito à família e à vítima 14. Ademais, a divulgação, eventualmente, pode estimular atos desesperados de outros indivíduos abalados pela notícia e com tendências suicidas.
Dificuldades psicossociais somadas a fatores biológicos, fadiga ou perda de energia, pensamentos de morte recorrentes, dentre outros, devem despertar a atenção clínica para um quadro depressivo, conforme o Manual Diagnóstico e Estatísticos para os Profissionais de Saúde Mental alertando para tendências suicidas.15
Instituições filantrópicas e religiosas têm se dedicado ao atendimento individual, pelos meios disponíveis de comunicação, visando desencorajar a prática do suicídio, mediante o oferecimento de alternativas superadoras da crise emocional atravessada pelo provável suicida. 16
Por lógico, o suicídio tentado não é considerado crime, até porque a finalidade da lei penal é punir quem induza, instiga ou auxilia o suicida, pela sua participação em suicídio alheio. Portanto, a pessoa que “tenta” o suicídio não pode ser criminalmente responsabilizada, por medida de política criminal, mas amparada pela saúde pública. 17
Maria da Glória Colucci |
Premiações: Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará, 1976-1o lugar); Prêmio Ministério da Educação e Cultura, 1977 – 3o lugar); Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado, 1997, 1o lugar). Troféu Carlos Zemek, 2016: Destaque Poético. Troféu Imprensa Brasil 2017 e Top of Mind Quality Gold 2017.
2 EZZELL, Carol. A neurociência do suicídio. Viver Mente & Cérebro, disponível em www.vivermentecerebro.com.br, p.51.
3 COLLINS, Gary R. Aconselhamento cristão. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984, p.75-79.
4 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 1988, disponível em www.planalto.gov.br
5 COLLINS, Gary R. Op.cit, p.75.
6BRASIL. Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990, disponível em www.planalto.gov.br 7 BOLGUESE, Maria Silvia. Sociedade de consumo e bem-estar. Viver Mente & Cérebro, disponível em www.vivermentecerebro.com.br. 8 Id., p.62.
9BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 1988, disponível em www.planalto.gov.br
10 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus-Livraria Editora, s/data, p.79.
11 Id., p.81.
12 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999,
p. 679.
13 O que se sabe até agora sobre o jogo da “Baleia Azul”. Disponível em www.oglobo.globo.com
14 CASTRO, Arlaine. Editorial: O suicídio e a ética jornalística; disponível em www.gazetanews.com, em 17.2.2018.
15 BRASIL. Manual Diagnóstico e Estatístico para os Profissionais de Saúde Mental, disponível em www.365saude.com.br16 CVV. Centro de Valorização da Vida, disponível em www.cvv.org.br
17 BRASIL. Código Penal – Decreto-Lei n.2848, de 7 de dezembro de 1940, disponível em www.planalto.gov.br
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