Maria Fátima Gonçalves: A identidade poético-cultural em OS RELÓGIOS DE DALÍ, de Isabel Furini

A IDENTIDADE POÉTICO-CULTURAL EM “OS RELÓGIOS DE DALÍ”, DE ISABEL FURINI.

Maria de Fátima Gonçalves*
Francisco Leandro Torres**

RESUMO
Incorporado à temática Literatura e Identidade Cultural na Pós-modernidade, a pesquisa e a produção da escrita deste artigo emergiram-se a partir da indagação: quão dar-se-á o processo de formação da identidade cultural da poética do livro Os Relógios de Dalí de Isabel Furini? Tem como objetivo geral compreender por meio de análise dos poemas como emerge essas identidades culturais da poesia de Furini. O estudo do referido livro se desdobrou a partir das estruturas, externa e interna da obra literária, as quais foram suportes norteadores para aquisição do entendimento acerca do processo de construção da identidade poético-cultural de Os Relógios de Dalí, teoricamente os versos brancos ou soltos e livres que predominam na obra assim como o conteúdo, a linguagem e os discursos foram analisados mediante o pensamento crítico de (HALL 2011), considerando os conceitos de sujeito do iluminismo, sujeito sociológico e sujeito contemporâneo, assim como também as ideias de culturas híbridas a partir da visão de (CANCLINI 2013), e (BAUMAN 2005) na perspectiva de identidade nacional e pessoal. Analiticamente, a poética presente na obra em análise afugenta a ideia do sujeito do iluminismo e identidade nacional, e incorpora a percepção do sujeito sociológico e sujeito pós-moderno.

Palavras-chave: Os relógios de Dalí. Identidade Cultural. Poesia. Isabel Furini.

INTRODUÇÃO

O presente artigo insere-se no horizonte de discussão: literatura e identidade cultural na pós-modernidade. Sabe-se que a literatura pode ser um instrumento bastante relevante na educação e formação intelectual do ser humano. Para (CANDIDO 1995), a literatura tem sido um referencial poderoso de prazer e catarse; comunicação e interlocução; humanização do ser humano; encontro do individual com o social e instrumento educacional que contribui com os currículos, propondo a esses elementos que contribuem para o desenvolvimento intelectual e afetivo.
“A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (CANDIDO, 1995, p.177). Em síntese pode-se situar a literatura uma ciência que humaniza o ser humano eminentemente uma vez que elabora o viver. Por outro lado o processo de formação da identidade cultural dar-se via os contextos: cultural, político, histórico e social, os quais são sempre mutáveis, flexíveis e abrangentes. Para alguns estudiosos do assunto, dentre eles (CANCLINI 2013) e (HALL 2011), o conceito de identidade cultural é um tanto complexo, uma vez que a identitária cultural está relacionada com a nossa percepção de mundo exterior e como nos interagimos em relação a ele, tornando um processo contínuo e perpétuo e ao mesmo tempo sujeito a mudanças.
Incorporado nessa perspectiva temática, a pesquisa e a produção da escrita deste artigo emergiram-se a partir da questão problematizadora, “Quão dar-se-á o processo de formação da identidade cultural da poética do livro Os Relógios de Dalí de Isabel Furini1?” Para tanto tem-se como escopo compreender as identidades emergentes da poesia de Furini e objetivos específicos: a) depreender o conceito de construção de identidade cultural na pós-modernidade; b) situar as principais características da autora da obra e c) analisar a escrita poética do livro Os Relógios de Dalí considerando os aspectos que demonstram sua construção identitária.
A obra literária, Os Relógios de Dalí, enquanto estrutura externa é composta por cento e quatro poemas, com predominância de versos brancos ou soltos e versos livres. Já a estrutura interna é composta por um conteúdo que faz alusão ao quadro do pintor surrealista Salvador Dalí2 batizado de “A Persistência da Memória” 3 (1931). Esse quadro é constituído pelos seguintes elementos: “os relógios moles, o relógio vermelho, as formigas, o amorfo no centro da tela, o ramo seco, a mesa, um inseto voando sobre um dos relógios moles e ao fundo o mar e os acantilados. A luz chega do lado direito e ilumina o fundo do quadro” (FURINI, 2016, p,7).
Pode-se elucidar, na pintura de Dalí, a existência de uma desarmonia psíquica que se avoluma por meio de um inusitado jogo de disparidade: rochas inflexíveis e relógios flexíveis, luz e sombras, realidade e fantasia, razão e absurdo.
A matéria do referido livro usufrui desses elementos e desenvolve um tema relevante ao atual contexto social direcionado ao mundo global movido pelo desenvolvimento tecnológico, consumo e seres humanos fluidos, seres amorfos, que vivem no tic-tac das horas, com valores e crenças efêmeras. Quanto aos aspectos linguísticos traz uma linguagem metafórica e personificada com vocabulário formal articulada aos discursos reflexivo, emocionante e lúdico, com intuito de induzir uma interlocução de cunho emocional e propagar a realidade sociocultural do cenário globalizado vigente. Dentro dessa perspectiva estrutural de aspectos formais e aspectos linguísticos, a escrita deste artigo usufruiu de alguns pensadores teóricos que deram subsídios necessários para a compreensão das análises tanto da obra como também da identidade cultural da poética do livro em estudo.
Os autores Stuart Hall, Néstor Garcia Canclini e Sygmunt Bauman trazem um entendimento acerca da identidade cultural partindo da concepção de um sujeito unificado, todavia com a repercussão do fenômeno global esse entendimento passou a ser equivocado devido ao deslocamento de seus elementos constituintes (identidade fixa, egocêntrica, racional e etc), sendo assim o sujeito unificado passou a ter um caráter fluido, polissêmico, móvel e identificando com variadas referências cultural. Já ao que se refere à teoria do processo de aquisição do contexto externo e interno da obra literária foram usufruídos das óticas de Alfredo Bosi, Maria do Rosário Valencise Gregolin e Domício Proença Filho.
O referido artigo está estruturado em três seções, na primeira tem-se a análise dos elementos formais do livro em estudo ou a estrutura externa. Nesta seção foi considerada a análise dos números de versos por estrofes, número de estrofes, esquema rimático em cada estrofe, métrica dominante e tipo de rima existente.
Na segunda seção se encontra a análise da estrutura interna do livro, nesse caso, foi analisado o conteúdo do livro (da poesia), a parte referente aos aspectos linguísticos: tipo de linguagem, tipo de discurso e figuras de linguagem, assim como também as características do contexto social da contemporaneidade, do contexto literário e as principais características da autora.
A terceira seção contém a análise da identidade cultural da poética do mencionado livro considerando o conceito de identidade cultural na visão de (HALL 2011), partindo do entendimento do conceito do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito contemporâneo.
 Na visão de (BAUMAN 2005), partindo da concepção de identidade via mediações do mundo "interior" e o mundo "exterior", ou seja, o indivíduo ao mesmo tempo em que projeta algumas individualidades no mundo exterior como desejos próprios e vontades também se internalizam o mundo exterior (normas, língua e valores) e na visão de (CANCLINI 2013), partindo da concepção de identidade cultural na perspectiva do desdobramento do fenômeno globalização.
À luz desses entendimentos e ao tic-tac d’Os Relógios de Dalí, este convida o leitor, a perfurar a tela de Dalí com as poesias de Furini, e perceber que os furos que os poemas ocasionam na realidade faz emergir identidades. Abaixo se encontra uma mensagem da autora da obra literária para o leitor do livro Os Relógios de Dalí:

Amigo leitor:
Podemos lutar contra moinhos de vento ou derreter como os relógios de Dalí, mas nessa    paragem inóspita que é o mundo contemporâneo, não podemos esquecer os nossos sonhos – são eles que alimentam nossa alma. (Isabel Furini)


OS RELÓGIOS POR FORA: elementos formais nas horas surreais

O referido livro é composto por cento e dezenove (119) páginas, cento e quatro poemas (104), duzentos e oitenta e sete (287) estrofes, sendo onze (11) poemas compostos por uma (1) estrofe, trinta e dois (32) poemas compostos por duas (2) estrofes, quarenta e cinco (45) poemas compostos por três (3) estrofes, doze (12) poemas compostos por quatro (4) estrofes e quarto (4) poemas compostos por cinco (5) estrofes.
Esse acúmulo parece significar o acúmulo das horas surreais que nos chega atravessados na composição dos poemas em suas diversas batidas em estrofes: monástico (estrofe com um só verso), parelha (estrofe com dois versos), terceto (estrofe com três versos), quadra (estrofe com quatro versos), quintilha (estrofe com cinco versos), sextilha (estrofe com seis versos), sétima (estrofe com sete versos), oitava (estrofe com oito versos), nona (estrofe com nove versos), décima (estrofe com dez versos) e irregular ou bárbaro (estrofe com onze ou mais versos).
Com predominância em tercetos, quadras, quintilhas e sextilhas. Mil duzentos e setenta (1.270) versos sendo mil e setenta (1.070) classificados de versos brancos ou soltos e duzentos (200) versos que rimam entre si, salientado que existem poemas com no mínimo seis (6) versos e no máximo vinte e nove (29) versos. A média de versos que compõem as estrofes são cerca de doze (12) versos por poemas. A máquina do poema, em Furini, marca o compasso e descompasso das horas, a engrenagem dos relógios, poema e poesia de cada hora traduzida no cronos dissolvido na existência de cada sujeito e suas identidades. E nessas identidades o poema se identifica como criação “poesia que se ergue” (PAZ, 2012, p.17).
É pertinente ressalvar que os poemas mais reduzidos do livro são monóstrofes sextilhas intitulados: “Memórias futuras”, “Faces”, “Espelhamento” e um (1) composto por duas (2) estrofes (uma quadra e uma parelha) intitulado “Velhos” e o mais extenso intitulado “Cabeças de Relógios Moles” constituído por cinco (5) estrofes (uma sétima, uma quintilha, uma nona, uma parelha e uma sextilha).
Também foi diagnosticada a ausência de estrofes simples, estrofes compostas e a presença de estrofes livres. Já o que se refere às classificações das rimas verifica-se a presença das rimas externas, rimas internas, rimas cruzadas, rimas paralelas, rimas intercaladas, rimas encadeadas, rimas misturadas, rimas pobres, rimas ricas, rimas preciosas, rimas agudas, rimas graves, rimas esdrúxulas, rimas perfeitas, rimas imperfeitas, rimas assoantes e rimas aliterantes.
Considerando os dados numéricos dos versos observa-se a predominância dos versos brancos ou soltos. Quanto à metrificação predominante pode-se classificar de verso livre cuja métrica não possui número exato de sílaba poética. Em outras palavras, pode-se considerar que o livro Os Relógios de Dalí tem seus versos predominantemente constituídos por versos brancos ou soltos e versos livres. Porém foi confeccionada uma tabela contendo os dados dos elementos formais com a intencionalidade de detalhar significativamente a estrutura externa ou elementos formais dos poemas do livro em estudo.

OS RELÓGIOS POR DENTRO: Dalí e de Furini no tempo da poesia

No tocante da matéria da obra em estudo, priorizou-se a situar primeiramente uma breve discrição explicativa do quadro “A persistência da Memória”, de Salvador Dalí, visto que o livro Os relógios de Dalí, de Isabel Furini é uma intertextualidade dessa arte plástica. Os elementos que compõem o quadro são:
a) quatro relógios sendo três com aspectos de imagens moles, derretidas ou flácidas que marcam horas diferentes transparecendo retratar a relatividade do tempo e do espaço e/ ou a obsessão do ser humano com o transcorrer das horas (tempo) e com a memória;
b) o outro relógio de cor vermelha não apresenta aspecto de imagem derretida ou dilatada, se encontra fechado e sendo devorado por formigas “será um coração humano?” / “Será um coração da tempo?” (FURINI, 2016, p.31);
c) as formigas seres que representam vida e que devoram um suposto coração (relógio vermelho) seja de humano ou do tempo;
d) o amorfo (ser sem forma) localizado no centro da tela do quadro com um dos relógios moles em cima, esse ser representa o ego (o mundo interior) do próprio Dalí o qual está dormindo e sonhando com o desejo sexual;
e) o ramo seco que simboliza a morte;
f) uma mesa, um inseto voador sobre um dos relógios moles que pode ser interpretado com a ideia de que o tempo não “anda” e sim, “voa”;
g) ao fundo da tela encontra-se o mar e os rochedos;
h) o quadro apresenta uma tonalidade de cores influenciadas pela a luz solar e a sombra da mesma. Assim, produzindo uma projeção de jogo de cores: amarelo, castanho e azul do mar as quais ficam projetadas no segundo plano do quadro, em decorrência da luz solar, já no primeiro plano percebe-se mais um tom escuro em função da sombra solar.
Considerando que o pintor Dalí era adepto ao movimento surrealismo e usufruía das teorias dos intelectuais: Sigmund Freud (a existência do inconsciente) e Albert Einstein (relatividade - espaço e tempo). O artista constrói uma representação icônica distorcida da realidade, ou seja, os objetos desenhados na tela são representados de forma que não correspondem com suas representações no real. O espaço e o tempo se tornam flácidos, deformados a sombra aos poucos se sobressai ampliando sua dimensão na tela, sob a pujante força, abstrusa e incoerente, que emerge do interior da alma humana.
O quadro transporta uma mensagem metafórica da mente humana na perspectiva da dicotomia vida anterior e vida interior cujo tempo é mensurável e sentido, a fantasia afugenta a realidade e a memória persiste. A autora ao referenciar a arte de Dalí, ela explorou todos os aspectos e elementos que compõem o quadro, incluindo inclusive a linguagem fictícia da reminiscência e dos sonhos. Construindo uma articulação fabulosa acerca da realidade (hiper-realidade) dos contextos: sociocultural e literário contemporâneo.
A obra em estudo apresenta certas preposições: a influência do avanço tecnológico no cotidiano das pessoas (algumas consequências negativas), o avanço do processo globalização com suas consequências negativas e as influências do tempo e espaço mensuráveis no cotidiano sociável. Em outras palavras, o conteúdo do referido livro abarca as temáticas tempo, tecnologia e capitalismo os quais se configuram no processo atual da era globalização.
Pode-se observar no conteúdo do livro Os relógios de Dalí a presença de um conteúdo que provoca a reflexão, assim como também a presença de um conteúdo que apenas passa a ideia de alguns assuntos contemporâneos um tanto já massacrados pela crítica literária. Isabel Furini produziu uma poética que articula as influências desses temas mencionados com o fator psicológico do ser humano.
O tempo, o capitalismo (sistema neoliberalismo - consumo) e a tecnologia, os quais desencadeiam o atual estágio da globalização, estão metamorfoseando o ser humano em seres que aos poucos vão perdendo suas capacidades e habilidades de seres pensantes ficando a mercês das ferramentas tecnológicas, escravos do tempo e do consumo, donos de nada nem da própria liberdade, seres humanos camuflados, cheios de dúvidas, de medos, de incerteza, de tristeza e solidão, de desafeto e diálogo fragmentado, que habitam um mundo do faz de conta (com necessidade de serem felizes vinte e quatro horas por dia, com sorrisos falsos e sentimentos efêmeros).
Enfim, traz a perspectiva cotidiana do homem contemporâneo que em síntese é um ser humano prisioneiro das horas, consumido pelo desassossego, estresse, desilusões, mercado consumidor, que vive intensamente somente o agora e se esgota no exílio da razão, do ódio e das frustrações. Vejamos o poema abaixo:

CAMUFLAGEM

(A) Vivemos camuflados
(B) somos formigas devorando o tempo
(C) e o relógio vermelho

(D) somos formigas deglutindo as emoções
(E) o mundo
(F) e os sentimentos

(G) nosso mundo tecnológico
(H) (segundo Erich Fromm)
(I) transformou-se em uma grande teta
(J) onde a humanidade mama
(K) esperando superar a aflição
(L) a sensação de vazio
(M) o medo
(N) e a insatisfação. (FURINI, 2016, p.47)

Este poema transmite uma mensagem em que demonstra a fragilidade (“aflição”, “sensação de vazio”, “medo” e “insatisfação”) do ser humano o qual se aliena alimentando uma ilusória solução que virá pela utilização da tecnologia. Sabe-se que cada vez mais a ciência está a serviço do desenvolvimento tecnológico e com os avanços nessa área fez com que a humanidade passasse a usufruir cada vez mais dessas ferramentas e assim, se alienando a ponto de ficar completamente dependente das novas tecnologias.
Saindo do conteúdo poético da obra e adentrando na sua linguagem poética a obra apresenta uma linguagem praticamente ausente do padrão formal ou forma fixa da poesia tradicional, a linguagem que predomina é referente tão somente ao ritmo, a semântica, a sintaxe, a musicalização natural da fala e da leitura. Dentre os traços peculiares persistentes na linguagem poética da obra em estudo têm-se o uso da linguagem literária a complexidade, a multissignificação, a conotação e a variabilidade, visto que existe a possibilidade de uma variedade de interpretações dos poemas, assim como a presença de mudanças culturais as quais podem ser observadas no discurso individual e no discurso cultural da obra.
Por ser uma obra literária alusiva à outra obra artística especificamente de linguagem não verbal (quadro “A Persistência da Memória” de Salvador Dalí) das artes plásticas nem sempre sua linguagem é transparente. Sendo assim, podem demandar do interlocutor ou leitor maior senso estético e maior capacidade de análise e interpretação do discurso da linguagem presente no livro.
Na ótica de (VANOYE 2003), uma obra não pode ser somente criação nem tampouco só comunicação e sim a junção da criação e da comunicação feita pelo autor. Sendo assim: “- a obra é uma criação e como tal ‘é portadora’ da mensagem individual do autor por intermédio de seu sistema de significações; - a obra é comunicação e, como tal, utiliza o código comum a um grupo social (código de linguagem, código de gênero).” (VANOYE, 2003, p. 188).
Considerando que cada circunstância da vida requer uma espécie de linguagem, assim como cada mensagem abarca uma finalidade e cada ambiente social requer uma espécie de fala, o vocabulário escolhido pela autora para fazer a interlocução foi especificamente com a função de emocionar e conduzir a realidade sociocultural do contexto globalizado vigente. “É da relação entre criação e comunicação que nasce o valor da obra. Uma obra que é somente criação é incompreensível, ela está por demais distanciada do público; uma obra que é apenas comunicação é banal, estática, obra morta [...]” (VANOYE, 2003, p.188).
Para tanto a obra Os Relógios de Dalí abarca uma dualidade perceptível que é a união indissociável entre comunicação e criação. A autora ao praticar essa dualidade transporta uma mensagem individual que é sua percepção de compreensão e interpretação sobre as artes plásticas, o seu “olhar” singular que capta as informações da tela de Dalí a qual é também nominada “Os Relógios Moles”, e as transformam em seu subjetivo ou em subjetividade a qual é metamorfoseada a partir das suas interações socioculturais, adquiridas com as experiências de residir em quatro países da América do Sul – Argentina, sua nacionalidade, Peru, Colômbia e atualmente está radicada no Brasil na cidade de Curitiba-PR, assim como também suas viagens intercambio por países do continente Europeu e até mesmo o acesso à cultura das regiões brasileira.
E esse hibridismo sociocultural lhe assegura elementos que subsidiam o ato da sua criação como também um código de linguagem e um código de gênero responsável pela comunicação o qual foi explicitado no primeiro parágrafo referente à linguagem. Vejamos um poema:

FACES

(A)
Vejo as faces dos relógios azuis
(B) faces deformadas
(C) e surge a pergunta:
(D) qual será (além das máscaras)
(E) a face verdadeira
(F) de minha alma? (FURINI, 2016, p.49)

Esse poema nos passa uma comunicação construída acerca de uma linguagem ausente da forma fixa da poesia tradicional, cuja predominância é referente ao ritmo, à sintaxe, à musicalização natural da fala e da leitura. Sua estrutura externa se compõe majoritariamente de versos brancos ou soltos e versos livres com a presença de rimas cruzadas e assoantes nos versos (BD).
Traz um discurso enquanto tipologia do discurso textual descritivo, enquanto tipologia do discurso da personagem direto e de gênero literário lírico. Ao que se refere ao conteúdo (poesia), o eulírico se posiciona diante de um discurso descritivo direto reflexivo com a mensagem focada em si, mas que o leitor pode interpretar esse “eu” o reflexo do ser humano no contexto atual, isto é, a humanidade buscando compreender o sentido da espiritualidade humana neste atual contexto social cujo tempo é o principal provocador das nossas máscaras sociais.
“Na análise do discurso subjacente a um texto, podemos observar as projeções da enunciação no enunciado; os recursos de persuasão utilizados para criar a ‘verdade’ do texto (relação enunciador/enunciatário) e os temas e figuras utilizados.” (GREGOLIN, 1995, p.18).          
No tocante do discurso do livro, percebem-se vários discursos: lúdico, emocional, reflexivo, narrativo, descritivo, direto, indireto, indireto livre, lírico e dramático, no entanto os discursos predominantes enquanto a tipologia do discurso textual é o descritivo, enquanto tipologia do discurso da personagem é o indireto e enquanto tipologia do gênero literário é o lírico. “Empreender a análise do discurso significa tentar entender e explicar como se constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula com a história e a sociedade que o produziu”. (GREGOLIN, 1995, p.20).
Outros elementos fundamentais que estão intrínseco na linguagem poética do livro em estudo são as presentes figuras de linguagem: metáfora, antítese, paradoxo, personificação, hipérbole, ironia, polissíndeto, anáfora, onomatopeia e sinestesia, porém as que predominam são: metáfora e personificação. No poema “Respiração” [...] os relógios moles/ já nada registram/ e em seu descontrole/ derretem (derretem e choram) / choram as tristezas de todos os homens. (FURINI, 2016, p.13). Pode-se perceber o uso da presença das figuras de linguagem metáfora “os relógios moles” com sentido de tempo flácido, assim como também a presença da figura de linguagem personificação nos seguintes termos: “derretem e choram”, “choram as tristezas de todos os homens”.
  Está explicito que a análise da obra é direcionada pelos os aspectos estruturais, sendo assim, se faz necessário situar as principais características do atual cenário social e movimento literário, Pós-Modernidade cuja conceituação é um processo contemporâneo acarretado de transmutações pertinentes nas aptidões artísticas, filosóficas, sociológicas, psicológicas e científicas que se manifestaram a partir das décadas de 50 e 60. Na ótica de (SANTOS 2004), o período modernismo inicia em 1900, e se encerrar em 1950, a partir desta década nasce o período pós-modernismo “com a arquitetura e a computação [...]” (SANTOS, 2004, p.8).

O referido autor continua:
Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência e tecnologia invadindo o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural. (SANTOS, 2004, p.8)

Pode-se considerar que o pós-modernismo é como uma combinação de várias aptidões que vige até o presente momento seja na filosofia, na política, nas artes plásticas, na arte literária, na arquitetura, na economia e no meio sociocultural. Mas é válido salientar que tal conceito foi situado com intuito de trazer as principais características do contexto social pós-modernidade as quais são pertinentes para análise da obra em estudo.
Mediante a tal situação as principais características do mencionado período são: a busca do ser livre, a insegurança e o medo, o individualismo, a descrença na verdade absoluta do conhecimento científico, a valorização na relativização, a junção do real e do imaginário (hiper-real), a ausência dos valores e regras, o anarquismo, a pluralidade, a liberdade de expressão, a espontaneidade, a imprecisão, a dúvida, a produção em série, as relações humanas são efêmeras, a busca de prazeres incessantes, o excesso de informação, a redução de espaço e tempo, o tempo se resume no “aqui” e “agora”, o tempo fluido, o compartilhamento da vida privada do indivíduo via redes sociais, isolamento e solidão no que tange ao convívio social contato físico e a imensa expansão do mercado e consumo dentre outras.
“O pós-modernismo desenche, desfaz princípios, regras, valores, práticas, realidades. A desreferencialização do real e a dessubstancialização do sujeito, motivadas pela saturação do cotidiano pelos signos, foram os primeiros exemplos. Muitos outros virão.” (SANTOS, 2004, p.18).
Refletindo acerca dessas características percebe-se que o contexto social contemporâneo é estruturado predominantemente em função do desenvolvimento tecnológico auxiliado por uma ideia de tempo insuficiente para a sobrevivência do ser humano. Vejamos o poema: “Fragmentação”: O ser humano/ criou uma civilização globalizada/ e fragmentada/ sem tempo para olhar as estrelas/ sem tempo para olhar o firmamento/ sem tempo para outrem/ sem tempo para amar/ a vida humana transformou-se em um mar/ cujas ondas banham as pedras/ do isolamento. (FURINI, 2016, p.50)
Em virtude de tal situação atribuída à mensagem do poema compreende-se que a atual sociedade vive sem tempo para viver. (PALLARES-BURKE APUD BAUMAN 2003), atribui a esse contexto social de “Sociedade Líquida” que tudo é liquidez, em entrevista concedida a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge (Reino Unido) em 19 de outubro de 2003, ele explicita o que chama de sociedade líquida:

Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". É verdade que a vida moderna foi desde o início "desenraizadora" e "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente "reenraizado", agora as coisas todas - empregos, relacionamentos, know-hows etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. (PALLARES-BURKE, 2003, p.3 e 4)

A partir desse entendimento percebe-se que a matéria contida na obra foi projetada considerando os atributos do contexto social do período histórico vigente. Os Relógios de Dalí registam esse tempo no compasso da fluidez; do ser amorfo, do ser temporário, do ser munido de sentimentos efêmeros, e do ser que vive desesperado com o tic-tac das horas. No tocante do contexto literário o livro em questão pertence ao movimento literário contemporâneo o qual possui o marco introdutivo no final do século passado (séc. XX) e se alastra até o momento atual do século XXI.
A literatura brasileira desse contexto, a pós-modernidade ou contemporaneidade, teve um posicionamento diferente do modernismo, ao contrário da literatura modernista ou moderna que rompeu brutalmente com a tradição, a literatura contemporânea busca usufruir da literatura da tradição cujos escritores tentam reler sua própria tradição com intuito de se inserirem nessa tradição e assim evitar que ela desapareça.
“No Brasil, o pós-modernismo envolve uma dimensão plural: comporta manifestações que ainda muito devem ao modernismo, abrange movimentos de transição para o novo e abriga obras em que se presentificam traços pós-modernos.” (LOPES, 2000, p.267). Os Relógios de Dalí tem na sua poesia essa perspectiva de dueto envolvendo traços do passado e do presente. O poema “Hoje”: Ontem e hoje os relógios agonizam/ e morrem/ pintados na época do jazz-swing/ derretidos/ e simbólicos/ hoje são observados em silêncio/ pelos homens submersos/ em linguagens de computadores/ e em couraças de indiferença. (FURINI, 2016, p.42).
Pode-se observar nesta tensão da existência entre passado e presente que este no tocante da produção poética ainda transporta a realidade de um passado surreal. Mas é válido salientar que embora a literatura contemporânea não tenha rompido com a estética formal da literatura tradicional nem tampouco se distanciado da literatura modernista esse movimento literário (contemporâneo) tem suas particularidades específicas: literatura de características mesclável ou ecletismo (mistura de tendências estética), junção da arte erudita e da arte popular, literatura marginal e visual, presença do humor, temas (regionalistas, cotidianos e universais), engajamento social, experimentalismo formal, intertextualidade, inovações de técnicas (utilização de gráficos, colagens e montagens), formas reduzidas na produção de poemas, contos e crônicas (miniconto, minicrônica), metalinguagem e literatura mercadológica.
Segundo (BOSI 2002), a literatura pós-modernidade foge um pouco do contexto eurocêntrico e adentra no contexto das “margens” incluindo o convívio sociocultural dos marginalizados. Vejamos:

Surgiram, desde pelo menos os anos 70, uma literatura e uma crítica feminina, uma literatura e uma crítica de minorias étnicas [...] uma literatura e uma crítica homossexual, uma literatura e uma crítica de adolescentes, ou de terceira idade, ou ecológica, ou terceiro-mundista, ou de favelados etc. etc. (BOSI, 2016, p. 251).

A ideia contida na citação nos transporta umas das críticas positivas da literatura contemporânea, uma vez que, as críticas negativas acerca do pós-modernismo são mais expressivas que as positivas. Principalmente por ser uma “literatura-de-apelo” (BOSI, 2002, p. 250) espetacular, entretenimento passageiro e mercadológico. Para finalizar essa análise estrutural interna é pertinente situar as principais propriedades da autora da obra em estudo.

Isabel Florinda Furini nasceu em 1949, em pleno prelúdio do contexto social pós-moderno, categoricamente ela é uma escritora que pertence ao período literário pós-modernidade (contemporâneo). Suas principais, propriedades enquanto escritora são:
 a) apreço por temas universais (ecletismo religioso, mitologia egípcia - medo, morte e vida-, mitologia grega – elucidam as gêneses do mundo, as feições de vida, uma vasta diversidade de deuses, de deusas, de heróis e de heroínas –, mitologia indiana – retrata sonhos e medos da humanidade e religião -, e mitologia pré-colombiana – representa a criação do mundo, religião, morte e vida e vida pós-morte e uma multiplicidade de deuses designados pelos elementos da natureza -, globalização, tecnologia, natureza, sentimentos e capitalismo quase sempre explorando a junção dos fatores sociocultural e psicológico do ser humano) em outras palavras, a referida autora é majoritariamente escritora universal;
b) apreço por obras artísticas, das artes plásticas, com apreço especial para os pintores Vincent Van Gogh artista do século XIX o qual fez parte de vários movimentos artistas, todavia com mais evidências no impressionismo e pós-impressionismo e Salvador Dalí artista do século XX. A referida autora usufrui da intertextualidade e publica dois livros referenciando dois quadros um de Van Gogh intitulado “Campo de Trigo Com Corvos” (1890) livro intitulado “Os Corvos de Van Gogh” (2012) e o outro de Salvador Dalí “A persistência da Memória” (1931) livro “Os relógios de Dalí” (2016) o qual é objeto de estudo desde artigo;
c) outros traços presentes na poética de Furini como concepção de transformação, mundo ilusório que movimenta o ser humano, mundo espiritual, sincretismo religioso veem da influência de alguns intelectuais como: Heráclito de Éfeso conhecido como o filósofo do fogo (540 a.C. - 470 a.C.), esse filósofo instalou a ideia de que toda matéria é multável que nada é fixo, pelo contrário, tudo se transforma. Apesar de ser uma ideia fundada bem antes do Cristianismo, na contemporaneidade essa ideia é bem aplicável.  O filósofo Platão (427 a.C. - 347 a.C.) que pertenceu ao período histórico da antiguidade, sua filosofia teórica é embasada na perspectiva dicotômica entre o mundo ilusório, confuso (percebido com os sentidos humano) e o mundo espiritual o qual é grandioso, infinito, cuja a existência verdadeira são as ideias, que apenas a razão pode conhecer, o filósofo e poeta Nietzsche (1844 -1900) escreveu vários textos críticos sobre - a religião, a moral, a cultura, filosofia e ciência – o livro “O Homem e Deus” (1985) de Furini tem no seu conteúdo o ecletismo religioso, traz reflexão de várias crenças religiosas incluindo também uma alusão do livro “Assim falou Zaratustra” (1985), de Nietzsche e o psicanalista, filósofo e sociólogo  Erich Fromm (1900 – 1980) defensor do socialismo e do otimismo natural do ser humano assim como também a capacidade de opção do indivíduo;
d) quanto à estética a poética Furineana não é isenta da estética da tradição no que tange ao esquema rimático e tipos de rimas exceto a metrificação, todavia o que sobressai é o estilo poético do período literário modernismo (predominância de versos brancos ou soltos e versos livres), outro estilo marcante da referida poeta é o uso corriqueiro dos sinais de pontuação: parênteses cuja finalidade é exercer sua função gramatical no texto que é frisar um momento intercalado no texto, onde existe acréscimo de informação prescindível, esta informação pode ser retirada que não altera no sentido da frase, no entanto quando presente incrementa o conteúdo com informações aditivas assim como esclarece o que já foi dito e o uso  do deslocamento dos dois pontos (:) usando eles num espaço da estrutura do poema que o atribui valor de um verso na estrofe apenas por questões de estilo sem descaracterizá-lo da sua função gramatical;
e) quanto à linguagem a poética Furineana é majoritariamente de cunho emocionante, e par tal a autora busca elementos linguísticos que desencadeiam o sensibilizar e o excitar emoções.

METAMORFOSE IDENTITÁRIA DA POÉTICA CULTURAL DE “OS RELÓGIOS DE DALÍ”

A compreensão do processo de formação da identidade cultural da poética do referido livro em estudo foi analisada por intermédio dos aspectos da estrutura externa e da estrutura interna da referida obra, assim como também, por conciliação dos conceitos-chave do processo de formação da identidade cultural na perspectiva teórica do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico, do sujeito pós-modernidade e do desdobramento da cultura globalizada, ou seja, cultura híbrida.
A princípio pode-se distinguir o que é poética e o que é poema? Ambos têm suas peculiaridades “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual é o método de libertação interior. A poesia revela este mundo; e cria outro.” (PAZ, 2012, p.15). Há poesia sem poema, mas não existe poema sem poesia segundo (PAZ 2012), pode-se encontrar poesia em imagens, em fatos e no próprio ser humano.
Poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova de supérflua grandeza de toda obra humana.” (PAZ, 2012, p.16) embora exista poesia sem poema, todavia é no poema que a poesia se aufere e se transparece integralmente. Assim afirma Paz:

Um poema é uma obra. A poesia se polariza se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia no estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema que a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo o ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. (PAZ, 2012, p.17)

Constata-se que a poesia pode ser independente do poema, mas o poema só existe se houver o encontro entre a poesia e o ser humano, sendo assim, o poema deixa de ser uma forma literária e passa a ser o encontro entre a poética e o ser humano. Para tanto se fez necessário situar essa dualidade conceitual entre poema e poesia (poética), visto que o foco desta análise se consolida numa perspectiva de análise identitária da poética da obra Os Relógios de Dalí.
 Por certo momento tal análise pode-se distanciar da obra (poema), mas ressalvando que é no poema que a poética ou poesia se desnuda plenamente, o poema não será dissociável da poética, pelo contrário, essa junção dará subsídios relevantes para a compreensão do processo de formação da identidade cultural da poética presente nos poemas que constituem o livro.
Quanto à estrutura externa da obra diagnosticou-se que a obra se cristaliza numa estética poética com direcionamento para a estética do período literário pós-moderno, o qual não rompeu radicalmente com a estética da tradição, sendo assim, não se verifica essa ruptura brutal dentro da estrutura externa dos Os Relógios de Dalí. O que se verifica é uma mistura de elementos do estilo tradicional, especificamente a presença das rimas, mas com predominância de versos brancos e soltos e os elementos do estilo moderno (ausência da forma fixa) e presença atuante de versos livres cuja junção se configura como elementos formais de cunho pós-moderno ou contemporâneo. Leiamos mais um poema:

METAMORFOSE

(A) O músculo cardíaco está petrificado?
(B) está dormindo?
(C) ou esse lugar do peito
(D) é um local sombrio
(E) e está sempre vazio?

(F) onde está o dono do coração?
(G) onde está o rei do mundo contemporâneo
(H) o rei que abandonou o trono
(I) para metamorfosear-se
(J) em um Gregor Samsa
(K) amorfo
(L) rodeado de relógios azuis
(M) que marcam seu destino?

Pode-se perceber neste poema a composição estética dos demais poemas que compõem o livro, pois nele se percebe na primeira estrofe a presença das rimas, elementos pertencentes à estética da tradição e a ausência da forma fixa e da métrica; na segunda estrofe se percebe a ausência das rimas, forma fixa e da métrica. Em síntese este poema é constituído esteticamente com pouca presença das rimas, predominância dos versos brancos e soltos, ausência da forma fixa e métrica e presença dos versos livres, sendo assim se configurando num estilo literário de cunho pós-moderno.
 Percebe-se nessa mistura de estilos que ocorreu um processo de formação organizado nos contextos: histórico, cultural e social, e, assim, surge um novo estilo poético literário cujas caraterísticas são de princípios ecléticos, numa perspectiva bifurcada envolvendo passado e presente. Para compreender essa realidade na ótica do processo de formação da identidade cultural; qual seria a identitária cultural presente no contexto estrutural (externa) do estilo poético na obra Os relógios de Dalí?
Segundo (HALL 2011), a compreensão da identidade cultural ainda é bastante complexa, no próprio conceito se identifica essa complexidade, por ser um conceito de transitividade intensa. Retomando ainda a ideia de mistura de estilo, (CANCLINI 2013) afirma que o desenvolvimento tecnológico está influenciando nessa adesão de combinações “Piazzola, que mistura tango com jazz e a música clássica; Caetano Veloso e Chico Buarque, que se apropriam ao mesmo tempo da experimentação dos poetas concretos, das tradições afro-brasileiras e da experimentação musical pós-weberniana” (CANCLINI, 2013, p.304).
Respondendo a indagação anterior seria a fusão de estilos da tradição e do moderno? E assim, formando um novo estilo? Denominado de pós-moderno? Será que o mero fato da obra pertencer ao movimento literário e ao contexto social da pós-modernidade lhe assegura esse estilo de identitária cultural pós-modernidade? Bauman afirma:

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a ideia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começaram a ter essa ideia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta, e não de uma só tacada. (BAUMAN, 2005, p. 17 e 18).
 
Cruzando a ideia da citação de Bauman acerca de pertencimento e identidade com a ideia de que toda obra é objeto único e que o criador não possui estilo que a obra é criada “[...] por uma ‘técnica’ que morre no estante mesmo da criação. A chamada ‘técnica poética’ não é transmissível porque não é feita de receita, mas de invenções que só servem para o seu criador.” (PAZ, 2012, p.20).
Para (PAZ 2012), é verídico que o estilo assimilado como feitio comum de um grupo de artista ou de um período histórico, circunscreve com a técnica, tão intensamente no sentido de herança e transformação quanto na questão de ser conduta coletiva. “O estilo é o ponto de partida de todo o projeto criador; por isso mesmo, todo artista aspira a transcender esse estilo comum ou histórico.” (PAZ, 2012, p.20).
Às vezes, um artista é vencido pelo estilo o qual nunca é seu, e sim, de uma época ou do seu tempo. Sendo assim pode-se afirma que o estilo poético presente na forma estrutural da obra Os Relógios de Dalí pertence à identidade cultural pós-modernidade. Visto que, essa obra foi criada no tempo histórico literário denominado de contemporaneidade ou pós-modernidade. Nesse caso específico, o “pertencimento” é o principal fato determinador da “identidade” do estilo presente em Os Relógios de Dalí, uma vez que, a obra está inserida ou pertence ao estilo de uma época cuja autora se apropria do estilo, mas não como seu, e sim, como estilo do seu tempo literário.
Ainda que futuramente surja outro estilo literário no transcorrer do período histórico essa obra jamais pertencerá a este novo estilo se não o estilo da sua época. “Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa ser um poeta e se converte em um construtor de artefatos literários”. (PAZ, 2012, p. 20).
Quanto à estrutura interna da obra em estudo averígua-se que o conteúdo poético do livro é permeado por seres e elementos emblemáticos os quais se articulam com temáticas universais como capitalismo, tecnologia, tempo e espaço, sentimento e psíquico humano.  Relemos os versos do poema “METAMORFOSE”: este poema traz uma reflexão a respeito de transformação humana quanto ao sentimento afetuoso cujo ser humano está se metamorfoseando no sentido negativo desprezando os sentimentos amorosos e enrijecendo o coração. “O músculo cardíaco está petrificado?” / “está dormindo?” / “ou esse lugar do peito” / “é um local sombrio” / “e está sempre vazio?” / “onde está o dono do coração?”
Esse dono do coração que é o “rei do mundo contemporâneo” que abdica o que o ser humano tem de mais precioso (amor) para se transmudar em um ser “amorfo” ser sem formas e sem sentimentos em busca de uma ideia insana de priorizar o seu tempo para atividades profissionais, com o intuito de suprir as necessidades financeiras da família e que nem sempre são necessidades, mas para desfrutar do consumismo desacerbado a ponto de se transformar “em um Gregor Samsa” personagem da novela “A Metamorfose” de (KAFKA 1915) cujo personagem abdicou de seus desejos e vontades para trabalhar e sustentar a família e ao final ele se transformou num monstro e foi abandonado por todos.
E ainda “o rei do mundo contemporâneo” é escravo do tempo e se questiona se são os “relógios azuis” de Dalí “que marcam seu destino?” Tais relógios são de aspectos flácidos que se derretem e marcam horas diferentes num espaço e tempo do mundo contemporâneo.
Percebe-se que os elementos linguísticos da poética do referido livro estão híbridos com as características do contexto social, do contexto literário e da autora, assim se munindo de aspectos culturais do passado e do presente e construindo uma poética mística do “ontem” e do “hoje” que se aproximam com o tempo e o espaço do contexto da modernidade.
Para tanto se verifica qual identidade cultural se identifica a poética em Os Relógios de Dalí considerando os conceitos de sujeito Iluminismo, sujeito sociológico, sujeito pós-moderno e cultura híbrida. Segundo (HALL 2011), o sujeito do iluminismo está alicerçado numa conceituação da pessoa humana como uma criatura totalmente centralizada, solidificada, fadada das capacidades da razão, de discernimento e de ação cujo “o eixo central” consistia num núcleo interior, que aflorava pela primeira vez quando o indivíduo nascia e com ele se avolumaria, “ainda que permanecendo essencialmente o mesmo continuo ou idêntico a ele – ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial de uma pessoa era a identidade da pessoa.” (HALL, 2011, p. 11).
Nessa perspectiva conceitual de identidade do sujeito do iluminismo pode-se descartar da poética da obra em estudo seja pela identidade do eulírico, uma vez que a tipologia textual literária da obra em estudo é lírica.
A exemplo disso pode-se citar o poema analisado acima, o qual poeticamente desencadeia um processo de formação e transformação no seu conteúdo poético, como o próprio título traz a metamorfose do eulírico, da poética, e do poema. Tal transformação analiticamente desenvolvida num contexto sociocultural que emerge predominantemente por abstração do exterior para o interior. Um eulírico que se deixa ser influenciado pelo “mundo líquido” ou “modernidade da liquidez” como afirma (PALLARES-BURKE APUD BAUMAN 2003). Porém se articular a ideia do conceito do termo poema de acordo com a visão de (PAZ 2012), pode-se encontra a identidade do poema no conceito de identidade do sujeito do iluminismo.
Sabendo que o livro é uma obra composta por cento e quatro (104) poemas e que “o poeta se alimenta de estilo. Sem ele não haveria poema. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem, e cada um deles constitui uma unidade auto-suficiente, um exemplar isolado, que não se repetirá jamais.” (PAZ, 2012, p.21). Dentro dessa perspectiva, pode-se identifica nos poemas que compõem o livro o presença de uma identidade do sujeito do iluminismo, uma vez que um poema é uma obra artística que possui essência, que se produz em si, ou seja, é autossuficiente, é único no sentido de original, sendo que “o caráter irreversível e único do poema é compartilhado por outras obras: quadros, esculturas, sonatas, danças e monumentos. Todas elas são aplicável à distinção entre poema e utensílio, estilo e criação”. (PAZ, 2012, p.21).
Partido para o entendimento do sujeito sociológico na visão de (HALL 2011), verifica-se que existe uma aproximação de identificação poética com esse tipo de sujeito, pois a poética dos poemas em Os Relógios de Dalí são contundentes ao conceito de identificação do sujeito sociológico, cuja identidade é construída a partir da complexidade existente no mundo moderno, “é formada na ‘interação’ o eu e a sociedade, [...] o ‘eu real’ é formado e modificado num diálogo continuo com os mundos culturais, ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL. 2011, p. 11).
Deslocando esse entendimento para Os Relógios de Dalí pelo direito e avesso percebe-se que tanto os elementos formais como os elementos linguísticos do livro em estudo possuem uma identificação poética de continuidade com os universos culturais, pois não só a linguagem, mas todos os elementos estruturais são transfigurados de uma arte plástica e de um movimento literário e artístico do passado associado a uma nova criação literária no presente. E assim, a articulação tradição e ruptura se configuram em um novo processo de construção, surgindo uma nova obra literária de cunho contemporâneo, uma vez que esses atributos são categóricos do atual período literário.   E consequentemente uma identidade cultural na pós-modernidade.
Sabendo-se que esse tipo de sujeito exemplifica uma transitoriedade para o sujeito pós-modernidade cujo conceito é “conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente [...], mas sim, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” (HALL, 2011, p. 12, 13).
Partindo dessa concepção do sujeito pós-moderno e adentrando mais uma vez nas vias do direito e do avesso dos poemas do livro em análise se averígua o quanto é pertinente salientar que pode-se existir a possibilidade de encontrar no livro em estudo a presença de uma identidade fixa, essencial e permanente, quanto ao conceito de poema na visão de (PAZ 2012), assim como também a presença marcante de uma identidade poética seja do eulírico, seja do conteúdo, seja do estilo literário de caráter pós-modernidade.
Em síntese a poética presente em Os Relógios de Dalí é compatível com as concepções de identidade cultural do sujeito sociológico e sujeito pós-modernidade.

CONSIDERAÇÕES

Considerando a questão problematizadora e os objetivos em estudos considera-se que Os Relógios de Dalí se identificam na perspectiva de identidade poética, de caráter transformador, continuo, flexível, móvel e processual seja por intermédio dos dados dos versos e das estrofes cujas classificações se projetam respectivamente em versos brancos ou soltos e em versos livres.
Seja por intermédio da estrutura interna a qual apresenta características centradas na mistura de tendência estética, se apropria poeticamente de uma linguagem padrão se ausentado da linguagem popular, articula o tempo - flexivo, flácido, amorfo - que se derrete e marca horas diferentes em espaços diferentes da “Persistência da Memória” de Salvador Dalí com o tempo e o espaço do contexto contemporâneo, os quais se tornam cada vez mais próximos eliminando as distâncias entre espaço/tempo em virtudes do desenvolvimento tecnológico.
A poética que se insere nos poemas que compõem o livro é categoricamente de criação da arte pós-modernidade, isto é, espelham uma arte contemporânea assim como também possibilitam uma reflexão acerca de uma realidade retalhada, sobre um mundo caótico e descontextualizado, de seres humanos de vida fragmentada, escravos do tempo e do consumismo; uma mistura entre realidade e virtualidade (hiper-real).
Tal realidade lhe atribui uma poética em quanto estrutura externa e interna de cunho pós-moderno, todavia quando se analisa o conceito de poema na ótica de (PAZ 2012), se percebe uma identitária com pressupostos de cunho de sujeito do iluminismo, visto que o poema é criação autossuficiente e única que não se modifica nem se transforma.

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* Maria Fátima Gonçalves, Discente Pós-graduanda em Literatura e Ensino. E-mail: fatimamare@bol.com.br
** Docente Orientador, Francisco Leandro Torres, professor substituto do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN).

1. Isabel Florinda Furini nasceu na Argentina e atualmente vive radicalizada no Brasil como habitante Curitibana (PR) desde meado da década de oitenta (80). É educadora, palestrante e escritora, foi a partir da infância que ela iniciou sua trajetória poética, segundo ela, ainda não era alfabetizada quando começou a fazer poemas, naquela época ela utilizava da oralidade e um tio dela transformava a oralidade em escrita. Já publicou trinta e cinco livros para os variados públicos: criança, adolescente e adulto. Algumas de suas poesias foram premiadas no Brasil e na Europa (Espanha e Portugal) em 2015, foi nomeada Embaixadora da Palavra pela Fundação Cesar Egido Serrano (Espanha); Embaixadora da Rima Jotabé, Espanha; recebeu Comenda Ordem de Figueiró e foi nomeada Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil; em 2016, foi nomeada consulesa pela Academia Poética Brasileira.
2. Salvador Dalí Domènech, (1904 -1989) influenciado pelos os mestres do Renascimento foi um artista exuberantemente talentoso e de imaginação fértil. Era conhecido por fazer artes extravagantes para chamar a atenção, o que por vezes incomodava os seus críticos.
3. A obra “A Persistência da Memória”, também conhecida como “Relógios Moles”, pintado em 1931, Atualmente faz parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. O quadro foi inspirado em um queijo camembert que estava derretendo. 



REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt, 1925- Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/tradução, Carlos Alberto Medeiros, - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. (pag. 248 a 257).
CANCLINI, Néstor García. Cultura Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade: tradução da introdução Gênese Andrade. – 4. Ed. 6 reimp. – São Paulo: editora da universidade de São Paulo, 2013. (pag. 284 a 372)
CANDIDO, Antônio do ensaio. O direito à literatura. Vários Escritórios 3ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
FURINI, Isabel Florinda. Os Relógios de Dalí. Gênero: Poesia, capa: Carlos Zemek Revisão: Elciana Goedert Copyright © 2016, Editora: Insight Livros Artesanais, 2016
GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. A ANÁLISE DO DISCURSO: conceitos e aplicações. Revista 18 Alfa, São Paulo, 39:13-21,1995. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/3967/3642. Acessado em: 31 de jul de 2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro – 11. ed., reimp. – Rio de janeiro: DP&A, 2011.
LOPES, Kathi Crivelaro. Traços pós-modernos na poética de Carlos Drummond de Andrade, 2000. Disponível em: http://sites.unifra.br/Portals/35/Artigos/2000/33/tra%C3%A7os.pdf. Acessado em: 04 de jul de 2017.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Zygmunt Bauman defende a literatura como forma de compreensão da condição humana e ataca os "muros da academia" e a alienação dos intelectuais. Entrevista: especial a Folha de S. Paulo, São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/4_Encontro_Entrevista_A_Sociedade_Liquida_1263224949.pdf. Acessado em: 03 de jul de 2017.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária (Princípios; 49) 8ª. Edição. Ed.Ática: São Paulo, 2007. Disponível em: https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2015/07/proenc3a7a-filho-d-a-linguagem-literc3a1ria.pdf. Acessado em: 31 de jul de 2017.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1986.Disponível em: http://minhateca.com.br/roberio_na/O+que+*c3*a9+P*c3*b3sModernopdf,946737470.PDF. Acessado em: 14 de jul de 2017.
VANOYE, Francis. Uso da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita, coordenação da edição brasileira Haquira Osakabe; [tradução e adaptação Clarisse Madureira Sabóia... et al.]. - 12ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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