Bárbara Lia: Caá-boc



Caá-boc

Acho tão bonito ser cabocla
Sempre achei benção da lua
Ser cabocla da terra brasilis
Pele canela; olhos graúna


Acho tão bonito ser cabocla
No grupo escolar rústico
Aprendi a equação das raças
O resultado eu lia e sorria
Branco + Índio = Cabocla


Acho que não penso em pele
Acho que penso em palavra
Cabocla é palavra estelar


Dizer é como traçar
Asas de pássaros
Flechas e arcos
Cabanas e riachos


Sou cabocla
Por ser e por querer
Cabocla até morrer
Fotografia de Isabel Furini
Peya-Beyú

Pés livres nos quintais e os dedos nos astros
Tocar o coração da beleza na romã ao meio
Vermelhas constelações molhadas nas mãos
Viver a dançar ao ritmo da velha amiga chuva
Polenta na chapa do fogão à lenha e o chiado
Do rádio na prateleira, a lua triste embaçada e
Contos de terror no alpendre, o antigo e fosco
Lampião a lançar lerdos espectros na parede 
Hoje os campos seguem virgens de pés felizes
Grama intacta e a poesia presa nas tubulações
Lembro as cálidas manhãs e velhas caminhadas
Era feliz enquanto pisava um lugar chamado
Caminho gramado amassado



Quatorze anos. Tempo feliz na cidade empoeirada
A rua acabava a cem jardas daquela rústica amurada
Numa tarde irrompeu um urro triste muito demorado
O homem no caminhão não viu sua filha no gramado
Ela brincava quando o pneu a estraçalhou – no ato -
A cabeça da pequenina se abriu - como uma fruta -
Dizem que deu para ver as sementes do seu cérebro
Uma angústia lembrar a mãe da criança a gritar
Agora eu afirmo com certeza: conheço o som da dor
Estremeço sempre que recordo aquele som


elucidário:
- Caá-boc uma das palavras que deu origem ao termo – caboclo. Palavra Tupi que significa “o que vem da floresta”. A outra palavra seria kari’boca, “filho do homem branco”, advinda do processo de estratificação étnico-social ocorrido no período, através da miscigenação, sendo o caboclo o(a) filho(a) de um homem branco com mulher indígena, ou de homem indígena com mulher branca.

- Peya-Beyú palavra Tupi:  "pe" – caminho; "abiru" - gramado amassado

Bárbara Lia no TUC - Foto do Facebook
Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Poeta e Escritora. Professora de História. Publicou os livros: O sorriso de Leonardo (Kafka edições baratas/2004), O sal das rosas (Lumme Editor/2007), A última chuva (Mulheres Emergentes – MG/2007), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR/2008), Constelação de Ossos (Vidráguas/2010), Paraísos de Pedra (Penalux/2013), Respirar (Ed. do autor/2014), Forasteira (Vidráguas/2016), entre outros. Integra várias Antologias, entre elas: Blasfêmeas – Mulheres de Palavra (ed. Casa Verde), Treze Mulheres e Um Verão (ed. Psappha), J2Horas (Cronópios/Dulcineia Catadora), O Melhor da Festa 3 (Festipoa/2012), Amar - Verbo Atemporal (Rocco/2013), Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba/2013), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Moçambique/2012).

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