Robson Lima: Literatura não é autoajuda

 



LITERATURA NÃO É AUTOAJUDA

Muitas pessoas recorrem à literatura para tentar entender suas perdas ou desilusões, acreditando que, lá, encontrarão todas as respostas, quando tudo o que a literatura tem a oferecer são perguntas.


Sendo assim, o verso e a prosa literária estão mais para a Esfinge do que para um oráculo. É interessante notar que os livros de autoajuda se valem de tudo para provarem-se úteis, enquanto a alta literatura de tudo faz para provar-se inútil. Neste ponto, muitos poderiam questionar sobre a diferença entre o útil e o inútil. Claro, em um século em que a utilidade está acima da civilidade, é quase que um pecado fazer uma ode ao inútil. O pecado da ode ao inútil é tão grave que, na edição do ENEM 2019, a literatura quase que foi subtraída. Uma vergonha!


Acontece que o útil nasce de um trabalho repetitivo e, geralmente, ligado à produção, enquanto que o inútil nasce do ócio, mas de um ócio pujante exercido em uma vida cheia de virtudes que libertam. Como diria Sêneca em seu belíssimo trabalho sobre a brevidade da vida, revisitado em 2008:
"Nenhuma escravidão é mais vergonhosa do que a voluntária." (SÊNECA, 2008, p.19)


A autoajuda fabrica "winners" e, um único "winner", produz milhares de "losers". É isso que querem chamar de civilização: uma escravidão que aprisiona a humanidade e a classifica entre "winners" e "losers"?


Basta aos homens serem escravos de um trabalho repetitivo, escravos de "likes" ou miseráveis escravos de "views"? É possível se contentar com isso? Essa é a escravidão voluntária da qual fala Sêneca: a mais vergonhosa de todas.
Se, para alguns, essa escravidão basta, para outros, não. E é neste time que se encontram os autores de literatura obra de arte. 


A literatura não tem respostas para as tolas perguntas humanas. A literatura inquieta a "psique", provoca o "eros" e destrói o ego. Não há ego que resista a um bom romance ou a um bom poema. 


A boa literatura deixa o leitor, que entende o que lê, aquele minimamente letrado, nu, sem maquiagem, sem fantasia, sem filtro ou photoshop. E, hoje, como viver em um mundo sem maquiagem, sem fantasia, sem filtro ou photoshop? Quase impossível, não?


Por isso um poema, quando compreendido, sufoca, desespera. Por isso um romance, quando compreendido, esgana todos os "eus" e os lança ao inferno do existir. 


Então, não se pode, jamais, sob pena de inevitável morte, virtuosa ou vergonhosa, se confundir a autoajuda com as tempestades provocadas pela literatura. 


Em algum lugar há algum livro de literatura obra de arte cheia de enigmas para fazer ao bom leitor. Enigmas como este: "Decifra-me ou devoro-te"!
E o melhor de tudo é saber que esse livro não espera do leitor nenhuma resposta.

Professor Robson Lima



Para saber mais:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília (UNB), 2001.

AVERBUCK, Ligia Morrone. A poesia e a escola. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção. São Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2002.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,1995.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 1ª Edição. São Paulo: Contexto, 2007.

GOULART, Cecília, (2007). Alfabetização e Letramento: Os processos e o lugar da Literatura. In. PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy; PAULINO, Graça; CORRÊA, Hércules; VERSIANI, Zélia (Orgs.). Literatura Saberes em movimento. Belo Horizonte: Ceale, Autentica.

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre brevidade da vida. Tradução de Lúcia Sá Rebello, Ellen Itanajara Neves Vranas e Gabriel Nocchi Macedo. Porto Alegre: L&PM, 2008.

SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história literária. São Paulo: Ática, 1989.



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