Folhas secas flutuando no ar de outono. Resquício de paixão da primavera. Momentos de felicidade em uma fotografia antiga. Lembranças que não morrem.
Odiava ser chamada de “vó”. Achava que era muito nova para ser assim chamada. Havia enviuvado do marido mais velho que ela. Só mudou de idéia quando o netinho começou a balbuciar a palavra vovó. À medida que foi crescendo passou a mimá-lo, tolerando tudo o que ele aprontava. Um belo dia esqueceu o cofre aberto e o menino espalhou o conteúdo pela casa. Estourou o colar de pérolas e fez de outras jóias seu brinquedo. A avó se descontrolou e gritou com o menino.
Sentiu falta de algo importante. O que seria? Um rubi? Um diamante? As pessoas que chegavam para ajudar queriam saber o que era. Como se tivesse dito algo que não devia, ela desconversou. Disse para esquecer o assunto, mas era tarde para voltar atrás. Não podia mais desdizer o que foi dito. Todos perceberam o embaraço. Conjecturaram que ela escondia algum segredo. O tal objeto além de seu valor intrínseco, tinha alguma coisa que ela não queria dizer. Talvez um presente, uma lembrança do falecido esposo.
Aventaram a hipótese do objeto ter sido furtado. Sendo algo de valor, a polícia deveria ser chamada, o seguro acionado ou mesmo contratar um investigador. O pequeno incidente estava se tornando algo fora de controle. A vovó, preocupada com a repercussão, quis abafar o assunto. Reuniu seus familiares e pediu para que todos esquecessem o episódio mas, o efeito foi o contrário. Quanto mais tentava abafar, mais o bafafá aumentava. Era uma família do barulho, feliz e complicada. Normalmente eles brigavam quando o assunto era futebol e ultimamente por causa de política. Naquele momento esqueceram as diferenças e se uniram para saber do que se tratava. Era unanimidade descobrir o que havia acontecido. Havia a possibilidade de que o menino tivesse engolido, seja lá o que fosse. Apesar da negativa do menino, estava sendo encaminhado a um hospital para exame de raio X.
Pressionada, a avó não teve saída. Constrangida, confessou que o tal objeto perdido era um marcador de página. Ponto final. Achou que o assunto estava encerrado. Olhares curiosos a encararam com o rigor de uma inquisição. Marcador de página? Que história é essa? Então a senhora percebeu que não bastava confessar, havia necessidade de se explicar. O tal marcador seria uma raridade? Uma obra de arte? Um marcador confeccionado em ouro? A história estava ficando intrigante, interessante.
A vovó cada vez mais constrangida se retirou amuada. Já tinha confessado e ninguém tinha o direito de devassar sua intimidade. Os adeptos das teorias conspiratórias conjecturavam dezenas de hipóteses mirabolantes. Os românticos eram piores. Certamente o tal marcador de página era presente de alguém. Imaginavam histórias de amor e se emocionavam. Que história era essa? As pessoas mais próximas pediam: Vovó, por favor, conte pra nós!
Até aquele momento, a trajetória da vida da vovó era transparente e linda como se fosse um conto de fadas. O velho conto de uma menina pobre que encontrou o seu príncipe encantado. Neste caso o príncipe era o vovô, já falecido. Sendo viúva, não seria constrangimento nenhum que ela tivesse um novo amor. E se fosse do passado, antes de conhecer o marido? Não seria uma história de traição. Seria uma linda história de amor que não se apaga com o passar do tempo. Seria possível um amor durar décadas e mais décadas? Por que não? O sorriso e a juventude congelada em uma fotografia nunca envelhece, nem a alma congelada em um casulo. Por que seria culpada por manter viva uma lembrança? Por que teria de pedir perdão por amar alguém? Mas, ninguém queria que ela se desculpasse. Só queriam ajudá-la a encontrar o precioso marcador de página. Comunicar o seguro do item extraviado. Pelo tamanho da confusão, deveria ser algo muito valioso. Seguramente constaria na lista de bens segurados.
Finalmente, emocionada, ela esclareceu que o tesouro perdido era uma embalagem de bombom sonho de valsa. Sim, o tal marcador de página era uma embalagem dobrada de bombom, presente de alguém que foi o seu primeiro amor. Um simples pedaço de papel colorido dobrado e transformado em um marcador de página. Tinha o perfume de chocolate que a fazia relembrar os doces momentos da adolescência.
Franccis Yoshi Kawa
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