Vez ou outra as palavras fogem. Não é nada estranho, pelo contrário eu me sinto bem com o silêncio em que minha mente entra. Como se a quietude me abraçasse como amiga que acalenta e não está. É um contentamento do vazio. A plenitude do nada. As vezes sonho que o mundo todo está assim e nada precisa ser dito. Só há o entendimento. A plena inteireza. Estes momentos estão cada vez mais comuns em meus dias. A contemplação do tempo e o fluir silente. E quando saio disto para algo que gosto de fazer, escrever, fotografar, caminhar, escutar … fica mais vibrante tudo o que vivo. Eu tive medo, confesso. Logo que percebi que ficava períodos cada vez mais quietos, pensei que estava estranha, doente até. Mas agora percebo que sou cada vez mais eu. E eu estou inteira quando acalmo e calo. É nesta hora que vejo a primavera estar, que percebo desejos e os distingo das necessidades. Quando me afasto daquilo que me desrespeita e dou mais atenção às pequeninas sementes de gentileza. Quando não sou o que nada espera. Quando abandono o acreditar desconfio do que é e deixo ser.
Agora que estamos já no fim do ano me pergunto: sobre o que deveria falar? Quais palavras usar para desejar isto ou aquilo para o ano vindouro? Já está tão longe o início de 21 e inexistente o que será de 22. Eu tornei hábito o método do agora. A consciência plena nunca foi nem estará. Ela é! E isto basta. É a folha nova que se desdobra lentamente até estar toda aberta ao ser fotossíntese. É a abelha na busca diária flor em flor que vira mel. É a cria do pássaro que cai no quintal e quase perde a vida na esperteza do gato. É o tempo que não existe e insistimos em medi-lo. É o vento que farfalha as árvores num balançar leve. É o som ensurdecedor das ondas que não param, nunca param. É o sono leve dos felinos na sombra da manhã. É o olhar doce do parceiro no contentamento do momento. Não há amanhã, mas quando chegar será nosso hoje.
O ano foi um baião de quatro toques que ora chamegava, ora tropeçava o pé do lado, ora tirava sorriso na cadência e por toda dança nos deu força para continuar. O ano que vem, quem sabe? Mas estaremos no ritmo que ele der. No fundo, no fundo eu espero que haja mais tempo para ver a algazarra da passarada pela manhã, que hajam sonhos e realizações, que se chorar seja menos pelas dores de ontem e mais pelos sorrisos de hoje, que o simples tome conta daquilo que não entendemos, que o outro não seja um rival e que eu possa aceitar toda estranheza que o mundo carrega. Ah, que hajam suspiros diante do novo e que o tédio não nos encontre.
Eu não sei você, mas tenho tentado harmonizar o fora (quando a vida me impõe sair) e o dentro (nas delicadezas da casa). Ainda estou em trabalho remoto em 60% de meu tempo e agora percebo o quanto isto é difícil. Até agosto era 100%. Também tive medo pela transição. E maior o medo foi de não ter trabalho. E agora percebo que preciso olhar para minha casa com mais carinho. Não foi fácil ficar um ano e maio dentro de casa. É preciso ter cuidado para a casa não se transformar o lugar do cansaço. Hoje tenho minhas estratégias para evitar esta tragédia. Caminhar, pedalar. Pense sobre isto. Não estou falando em fazer aquelas velhas promessas de fim de ano. Pense naquilo que você deixou se tornar presente em sua vida e se este novo elemento lhe faz bem ou não. Durante a pandemia fiz muitas coisas que não me fizeram bem e hoje penso sobre isto. Hábitos que permitimos e quando menos esperamos já comeu nossa paz como café da manhã. Espero que tenha tempo de qualidade para observar isto e outras boas coisas.
Diante desta confissão desejo amorosamente que tenha tempo e coragem para aproveitar o silêncio. O tempo e o silêncio em conjunção harmoniosa operam milagres. E que nosso próximo ano venha fortalecido de esperança e amor. Boas Festas!
Flávia Quintanilha.
Flavia Quintanilha é poeta e filósofa. Membro colaborador no Instituto de Estudos Filosóficos na Universidade de Coimbra e editora associada na revista Philosophy
International Journal. Pesquisa sobre hermenêutica filosófica principalmente nos temas metaética, metapoesia e deep ecology.
Publicou os livros Aporias da Justiça (Novas edições Acadêmicas - 2015), A mulher que contou a minha história (Kotter - 2018) e Desabotoar (Patuá – 2020).
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