Robson Lima: QUAL A DIFERENÇA ENTRE SE CONTAR UMA HISTÓRIA E SE FAZER LITERATURA?


Absorto em algumas leituras e desleituras a respeito da obra de Ernest Hemingway resolvi distrair-me com alguns aforismos de Oscar Wilde. Gosto da maneira direta e minimalista de suas frases. É como um gole de gasosa de groselha no escuro de um Cine, no exato instante entre o trailer e o filme. Então, me deparei com uma de suas grandes frases: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios"




Para o bem da Crítica Literária curitibana e para que as belas mentes de nossa cidade continuem lúcidas e vívidas, resolvi fazer uma breve distinção entre se contar uma história e se fazer Literatura. Claro que o tema não se esgota nas diminutas linhas de um artigo. Minha intenção é promover o debate e a reflexão. Os interessados em aprofundar o assunto podem entrar em contato comigo que será um prazer conversar a respeito.

Há um grande equívoco etimológico entre literatura (tudo aquilo que se escreva -literatura médica - literatura Cível, literatura de entretenimento, etc.) e Literatura Obra de Arte (a arte da palavra de sentido multívoco).

Então, é, sim, possível, alguém escrever um romance, conto ou poema, com muita boa vontade e sinceridade de coração, sem que isso seja Literatura, pelo menos não Literatura no sentido de Obra de Arte. Muitas vezes o autor se concentra no fato a ser contado, no que virá depois e em como a história terminará. Não há preocupação com a linguagem. É a língua sendo utilizada para comunicar uma história. Função referencial simples e pura. O óbvio da língua: comunicar.

O mesmo acontece com a poesia. Há pessoas que escrevem poemas com os mais puros dos sentimentos, pessoas que verdadeiramente traduzem seus sentimentos para o papel, achando que estão fazendo um poema Obra de Arte, quando, na verdade, estão fazendo prosa em forma de verso e prosa prosaica. O poema e a poesia exigem muito mais que sentimentos.

Alguns chamam isto de Literatura Popular, como se, para ser popular, a literatura tivesse que ser referencial, óbvia, confessional e medíocre. Não creio nisto. A Literatura Popular não pode ser pobre de ideias. Ela deve ser rica, bela, elevada, surpreendente e cabe aos professores e aos agentes de cultura primarem pelo rico, pelo belo, pelo elevado e pelo surpreendente, para que a Literatura Popular seja de qualidade.

Paulo Leminski tem um Minifesto que traduz exatamente o que penso a respeito da dita Arte Popular.

Minifesto 2

A literatura de um país pobre
não pode ser pobre de idéias.
Pobre da arte de um país
pobre de idéias.
Pobre da ciência de um país
pobre de idéias.
Num país pobre,
não se pode desprezar
nenhum repertório.
Muito menos
os repertórios mais sofisticados.
Os mais complexos.
Os mais difíceis de aceitar à primeira vista.
Lembrem-se de Santos Dumont.
Sempre haverá quem diga
que num país pobre
não se pode ter energia nuclear
antes de resolver o problema
da merenda escolar.
Errado.
Num país pobre,
movido a carro de boi,
é preciso pôr o carro na frente dos bois.

(LEMINSKI, 1997, p.15)

Andy Warhol fez arte do que era popular. E como o fez? Com riqueza, beleza, elevação e inovação. Esse deve ser o destino da arte popular: continuar popular, mas buscar o elevado, elevando, assim, a todos. Uma sociedade elevada com uma população elevada.

Mas será que todos podem fazer Literatura Obra de Arte? Nas palavras de Adorno:

“Uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica individual. Se esta visa efetivamente o todo e não meramente uma parte do privilégio, refinamento e delicadeza daquele que pode se dar ao luxo de ser delicado, então a substancialidade da lírica individual deriva essencialmente de sua participação nessa corrente subterrânea coletiva, pois somente ela faz, da linguagem o meio em que o sujeito se torna mais do que apenas sujeito.” (Adorno, 2003, p. 77)

Sendo assim, o refinamento e a delicadeza da produção literária brotam de uma mesma corrente subterrânea que é comum a todos: a linguagem. Ora, se a linguagem é comum a todos, todos os que souberem talhar a delicadeza áurea de um verso e souberem ter um olhar refinado para o constructo poético podem, com esforço e engenharia, escrever poesia.

Por isso é uma tremenda bobagem falar em poeta popular X poeta de elite. Paulo Leminski, ao que me consta, era popular, nem por isso pobre no verso. Mário Quintana era popular, nem por isso pobre no verso. Mário de Andrade era da elite paulistana, nem por isso era pobre no verso.

O que existe é o bom poema e o poema ruim e cabe ao olhar crítico, delicado, refinado e não maniqueísta separar um do outro, sem medo de ofender esse ou aquele poeta, porque o que está sendo avaliado é sempre o poema e nunca o poeta.

O que é, então, Literatura Obra de Arte? Bem, muito resumidamente, acreditando estar contribuindo com os leitores para a ampliação do olhar estético, para se fazer Literatura (prosa ou poesia) de qualidade é preciso colocar a linguagem acima da história contada. Nas palavras de Wilde, é preciso fazer a história amoldar-se aos desígnios da linguagem e não o contrário. Na literatura a arte se faz com a linguagem e não apenas com uma boa história. Eis a grande diferença.

Quero deixar claro que o que eu disse acima diz respeito somente a quem quer fazer ou tenta fazer Literatura Obra de Arte. Quem quiser apenas contar histórias em verso ou em prosa, por favor, continue escrevendo. Afinal, histórias precisam ser contadas.

Professor Robson Lima.

Robson Lima
O Professor Robson Lima é curitibano, nascido no bairro da Água Verde. É professor de Língua Portuguesa, Literatura, Leitura de Múltiplas Linguagens e um estudioso da poesia paranaense. Autor de livros didáticos, também é Consultor Educacional e Assessor Pedagógico nas áreas de Linguagens e Comunicação, ministrando palestras em todo o território nacional. Poeta, músico, declamador, ator, Crítico Literário e transador de palavras, Robson Lima é um amante dos versos, artes e artemanhas. Autor dos livros Wintervalo (poesia) e Leitura em Movimento: da letra ao letramento. (livro que versa a respeito do aprofundamento da leitura).

Contato: minhalinguanatua@hotmail.com ( Língua Portuguesa, é claro!)

Referências
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LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, p.15, 1997.
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TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004.



Comentários

  1. Genial!! Literatura não é vale tudo. Ainda bem que existem pessoas como o professor Robson Lima que nos mostra a diferença ente um texto qualquer e um texto literário. Parabenizo a revista pelo artigo.



    Rafaela Santana

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  2. Obrigado pelas reflexões, Prof. Robson. Confesso que tenho uma certa dificuldade com alguns conceitos da Linguagem. Consigo entender a sua frase "colocar a linguagem acima da história contada", mas não tenho muita certeza de como por isso em prática. Abraços.

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